Sem um tecto, mas de carne e osso

É numa das características ruas estreitas e ingremes de Portalegre que se encontra, quase sem dar nas vistas, o pequeno portão do CASA num “edificado antigo, anterior a 1950”. Depois de se passar o portão, um estreito corredor encaminha-nos até ao pequeno jardim onde os utentes do CASA passam algum do seu tempo livre, sentados nos bancos e cadeiras enquanto conversam uns com os outros e fumam o seu cigarro. É ao passar-se a porta da casa de paredes brancas que se entra no lar daqueles que um dia perderam o seu.

O centro, gerido pela Associação de Desenvolvimento e Regional d’Entre o Tejo e Guadiana (TEGUA), funciona com duas valências mas “uma nasceu primeiro que a outra”, como explicou Antónia Chambel, responsável pela instituição. “Primeiro a grande necessidade de encontrar aqui este espaço de acolhimento” que é o Centro de Alojamento Temporário (CAT) acolhendo neste momento dezanove pessoas. Posteriormente, percebeu-se ser necessário “dar apoio a uma população igualmente flutuante”. Como resposta a essa necessidade surgiu a segunda valência que foi designada como Centro de Dia (CD), mas com características diferentes do que é habitual ver-se “nas proximidades de um lar de idosos” pois é destinado a uma população em idade ativa entre os 30 e os 50 anos. Os utentes do Centro de Dia são pessoas que “podem ter uma ocupação lá fora, podem ter trabalhos lá fora, podem estar em quartos alugados, podem estar em casa de familiares mas têm um défice de autonomia para organizar o seu quotidiano”, esclareceu Antónia Chambel. Desta forma, o CD surge como resposta às necessidades básicas. Os utentes vão tratar da sua higiene pessoal, tomam as refeições e lavam as suas roupas, actualmente apoiando nove pessoas.

Estas pessoas podem chegar até este apoio de várias formas, mas “o processo normalmente mais comum é que sejam indicados pelo Instituto de Segurança Social”. Em Portalegre, neste momento, é comum que se faça através da Linha Nacional de Emergência (LNES) que está entregue à Cruz Vermelha. É uma linha de resposta social imediata e permanente a situações de emergência social, nomeadamente casos de mendicidade e sem-abrigo. O processo inicia-se neste serviço social “onde as assistentes sociais, numa primeira linha, recebem os pedidos de ajuda, falam com a pessoa e fazem a sinalização”. Posteriormente, se efectivamente se verificar que a pessoa está a “necessitar de um acolhimento de emergência ou mais prolongado, entram em contacto, neste caso, com o CASA. No entanto, o acolhimento de uma pessoa em condição de sem-abrigo, pode ser solicitado a esta IPSS por outros parceiros da comunidade, tais como: o hospital, os bombeiros, o centro de saúde e a PSP.

Desta forma, o CASA existe para numa primeira instância retirar da rua aqueles que perderam o seu tecto, mas para isso é necessário que “a pessoa queira vir para o acolhimento, queira aceitar essa ajuda”. Após o acolhimento é feito um diagnóstico da situação e elaborado um plano de desenvolvimento individual mediante as suas possibilidades e aquilo que necessita fazer. Nesta fase do processo é necessário ter em conta que “nem todos os utentes trazem a mesma problemática, nem todos os utentes têm também a mesma capacidade de resposta. No entanto, o objetivo final é a reabilitação social de cada pessoa na comunidade.

Diferentes motivos, o mesmo destino

Um sem-abrigo é um ser humano tal como todas as outras pessoas que detém direitos e deveres. Mas, tal como explicou Antónia Chambel, “é uma pessoa que num determinado momento da sua vida, passou por adversidades grandes” acabando várias vezes por viver na rua.

Estas pessoas acabam muitas vezes “por perder muito daquilo que são as suas referências sociais, o trabalho a família, os amigos, acabam por se sentir muito sozinhos”.

Por outro lado, podem também ser pessoas que: “mesmo tendo casa podem estar a viver em espaços que no fundo não são considerados espaços habitacionais adequados, são espaços improvisados e que não têm condições para que a pessoa possa viver com dignidade”, explica Antónia Chambel.

No CASA habitam três mulheres dos dezanove utentes na valência de CAT e cada um deles tem os seus motivos para estarem em situação de sem-abrigo.

Larissa tem apenas 19 anos e é um dos exemplos de que não foi por um erro seu que está nesta situação. Esta rapariga vivia em Estremoz com a mãe, no entanto, devido às escolhas da sua progenitora, Larissa resolveu sair de casa e procurar ajuda. Veio de urgência de Évora para o CASA onde deu entrada em Setembro.

“Ao princípio foi muito difícil adaptar-me porque a casa é mais de homens”, confessou a jovem ao JC.Online. Agora, cerca de quatro meses depois já conhece várias pessoas e sente-se bem acolhida.

Neste momento, está no centro de formação a acabar o 9º ano. Mas Larissa não se quer ficar por aqui, pois contou-nos que tem “o sonho de ser enfermeira” e por isso pretende terminar o 9º ano, completar o secundário e entrar na faculdade para o curso de enfermagem.

Nuno tem 34 anos, estudou e durante algum tempo trabalhou nas obras e na extinta EP – Estradas de Portugal, até que o seu pai lhe gastou o ordenado de setecentos euros. Nessa altura “parti-lhe uma televisão plasma grande e então o meu pai meteu-me na rua”, contou.

Esteve cerca de um ano na rua até que foi acolhido no CASA. Recebe uma pensão de invalidez e por isso não pode voltar a trabalhar. Para o futuro, espera conseguir reintegrar-se e ter a sua casa, acrescentado que “espero já não depender da minha família, já que me fizeram isto”.

Há outros factores externos que podem fazer com que as pessoas percam os seus bens. Em Portugal, um dos grandes problemas foi a crise e consequentemente o desemprego.

É o caso de Manuel que com 44 anos já há dois que vive no CASA. Manuel tinha uma família e um emprego como pintor de construção civil. Mas com o desemprego “começaram a haver conflitos” e foi graças aos amigos que “contactaram com a doutora” que conseguiu um lugar no centro.

“Agora faço é muitos trabalhos aqui no centro, mas é de carpintaria, restauro móveis e pinturas” contou. Neste momento, Manuel não tem contacto com as suas filhas que se afastaram devido aos conflitos que referiu no início da nossa conversa e continua sem arranjar um trabalho fora do centro. Manuel explicou que, para além do “desemprego ser muito”, também é muito complicado um sem abrigo arranjar um trabalho, pois “há muito preconceito sobre isso”.

No entanto, existem também casos de pessoas que as suas vidas mudaram devido às suas próprias escolhas e por vezes erros de que agora se arrependem.

João é exemplo de que as suas escolhas traçaram o seu destino até uma casa de acolhimento para sem-abrigo. Com 70 anos, a sua história de vida é já longa e repleta de altos e baixos, desde a vida profissional ao divórcio, deixando duas filhas “na altura que elas mais precisavam”.

Este homem de Almada, soldador de profissão, trabalhou vários anos na Lisnave e por conta da empresa em plataformas de países como “Dubai, Israel, Iraque”. Conta que “com o 25 de abril perdeu o seu trabalho”. Conseguiu novamente trabalho na Setenave mas, pouco tempo depois tudo terminou. Ainda assim, não desistiu e resolveu tirar um curso na área da hotelaria onde trabalhou até 2008, em Elvas e Espanha.

Em 2009 regressou à sua terra na Margem Sul mas depressa retornou a Elvas. “Como não gosto de fazer peso a ninguém e ainda tenho saúde disse à minha irmã: Eu vou à procura de trabalho” contou João. No entanto, a procura revelou-se difícil pois nesta altura “já metiam mais jovens” como empregados de mesa.

Foi nesta altura que por não ter onde dormir procurou ajuda e foi “lá para os sem-abrigo”. No entanto, a sua estadia revelou-se mais curta do que esperava devido a um erro seu. Houve um dia, num sábado que foi ajudar um rapaz num trabalho e consumiu bebidas alcoólicas. “Eu não posso beber, já há muitos, muitos anos e abusei”, confessou. João sabia que as regras de disciplina eram muito rigorosas e nesse sábado já não o deixaram entrar. “Na segunda-feira fui à doutora Cândida de Elvas eu já sabia, pronto: olhe pegue na sua mala e venha cá daqui por seis meses”, foi desta forma que acabou por dar entrada no CASA já há sete anos.

Neste momento cumpre todas as regras e arrepende-se de estar afastado das filhas, espera um dia conseguir arranjar coragem para se reencontrar com elas. Enquanto isso, ocupa os seus tempos livres a tratar da horta e a ver filmes mais antigos.

Exclusão Social: um problema real

Manuel é um exemplo concreto de alguém que por ser sem-abrigo vê dificultada a tarefa de arranjar um trabalho para poder reorganizar a sua vida e conseguir sair do centro que o acolhe.

Antónia Chambel vê esta problemática como “uma das formas mais brutais e mais violentas da pobreza” e acrescenta que “o que falta muita das vezes é o afecto, é a partilha, é a compreensão”.

Muitas das pessoas com falta de autonomia para cuidarem de si sentem-se sozinhas e por vezes a comunidade que os devia acolher “não abre a porta, às vezes fecha a porta”.

Provavelmente não seria necessário a valência de centro de dia para esta população sem abrigo “se não tivéssemos esta rejeição” por parte da sociedade. Para colmatar esta incapacidade da comunidade existem várias associações para além da TÉGUA como os programas da Cáritas, a Cruz Vermelha, os bombeiros voluntários. Nestas associações “onde as pessoas podem participar e onde podem ir para fazer um bordado, para ler um livro, para fazer teatro” entre outras atividades.

Dificuldades do presente com fim à vista

O CASA tem vários programas de solidariedade e um acordo de financiamento com o Instituto de Segurança Social, sem o qual seria impossível manter o centro aberto, pois as pessoas que apoia “é uma população que não pode custear aquilo que são as despesas reais ao longo do mês”.

No entanto, apesar dos apoios recebidos, estes são insuficientes para governar uma casa com as características do CASA e por isso é necessário fazer uma “gestão apertada e uma gestão sempre balanceada entre aquilo que são as necessidades básicas e aquilo que é o pode dar resposta no momento”.

Por outro lado, existe também um problema relacionado com o espaço em que está sediado o centro, pois começa a acusar desgaste e tem algumas barreiras arquitectónicas, tanto nas acessibilidades como “ao nível do espaço disponível para o convívio, para as oficinas de terapia e até mesmo para acolher mais utentes”. Por isso mesmo, o CASA já está a trabalhar para que consiga vir a dar mais condições aos seus utentes.

É por uma procura de melhores condições para os utentes que se está a preparar uma candidatura ao Portugal 2020.

O processo começou com a parceria entre a IPSS, a Câmara Municipal de Portalegre e o Instituto de Segurança Social, há cerca de ano e meio. Esta união foi criada para em conjunto ser encontrado um novo espaço para o CASA, na Quinta Formosa, a qual irá sofrer obras de reabilitação e passar a dispor de um “maior número de camas, instalações adequadas, sem barreiras arquitectónicas, com mais espaço, com oficinas de expressão  e com oficinas de terapia”.

“Estamos convictos de que vamos ter essa ajuda por parte do Estado e também da comunidade para a transferências destas instalações”, confidenciou Antónia Chambel.

 

Autor: Inês Costa

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