Não Me Despedi

O último beijo. O último abraço. O último toque. O último olhar. A pandemia tirou trabalhos e empregos, distanciou amigos e famílias, provocou crise social e financeira. Determinou a separação de países entre fronteiras. Trouxe sequelas físicas e psicológicas difíceis de apagar. Trouxe situações insustentáveis e mágoas insuperáveis; entre elas, tirou a possibilidade de haver uma última despedida daqueles que partem para sempre.

Até ao momento (fevereiro de 2021), a Covid-19 já matou mais de 2 milhões e 300 mil pessoas, em todo o mundo. Em Portugal, o número já ultrapassa os 14 mil. O coronavírus não escolhe idade nem sexo. Mata diariamente várias pessoas, pelo país inteiro. O ano de 2020 terminou com 123 mil mortes. Não morriam tantas pessoas há mais de 100 anos, escreveu o Jornal de Notícias. Faleceram, para além dos casos da Covid-19, um grande número de portugueses. Fosse por outras patologias, acidente ou apenas pela idade, essas pessoas partiram. Desde março de 2020, seguindo as normas da DGS (Direção-Geral da Saúde), os familiares não podem despedir-se. Os caixões permanecem fechados até ao final do enterro.

 

A pandemia trouxe situações insustentáveis e mágoas insuperáveis; entre elas, tirou a possibilidade de haver uma última despedida daqueles que partem para sempre.

 

Testemunhos de filhos, sobrinhos e netos confirmam a dor do momento e a sensação angustiante de não saber “quem está ali”. Falamos com a Gracinda Carmo, que perdeu a sua mãe. Com a Nita Barracho, que perdeu o seu pai. Com a Mariana Calado, que perdeu a sua tia-avó. Com Vítor Tavares, que perdeu o pai. Com Madalena Martins, que perdeu a sua avó. Nenhum deles estava infetado com a covid-19, mas morreram em época de pandemia­. Os procedimentos são iguais, mesmo que a causa da morte seja diferente.

Gracinda Carmo 

Gracinda Carmo conta a sua história. A mãe estava num Lar de Idosos porque tinha “a doença da demência”. Gracinda trabalha e não tinha como tratar da sua mãe, com todos os cuidados que eram necessários. “Chegou a cair e começou até a perder a noção se era de dia ou de noite, mas foi muito complicado deixá-la lá”, admite. Já no Lar de Idosos, Gracinda já só podia ver a sua mãe através de um vidro porque já existia casos de coronavírus em Portugal.

A mãe de Gracinda faleceu dia 3 de abril de 2020. Quatro dias antes, teve uma nova queda. “Perguntei logo se não era melhor ir para o hospital. Disseram logo que não, porque depois para regressar ao lar ia ser muito complicado por causa dos procedimentos da Covid-19. Então, chamaram lá um médico particular”. Todos os dias, Gracinda ligava para saber novidades da mãe e do seu estado de saúde. Passou por “um período horrível. Chorava e só Deus sabe o que eu sofri”. No dia em que a ia visitar, recebeu uma chamada do Lar a dizer que a sua mãe tinha piorado. Gracinda diz que percebeu a gravidade da situação. “Assim que falei com ela ao telemóvel, porque lhe passaram a chamada, eu vi que a minha mãe não estava mesmo nada bem”. Gracinda foi visitar a mãe, com todas as precauções necessárias. “Vi que ela precisava urgentemente de ir para o hospital e chamei uma ambulância”.

 

“Logo, assim que falei com ela ao telemóvel, porque lhe passaram a chamada, eu vi que a minha mãe não estava mesmo nada bem”.

– Gracinda Carmo

 

Gracinda lamenta ainda que as funcionárias do Lar de Idosos “não tenham tido a capacidade de ver que a minha mãe estava naquele estado. Nem tinham pilhas no aparelho para medir o nível de oxigénio. A minha mãe estava a morrer e ninguém via isso!”. Foi para o hospital, aguardou que a mãe chegasse. Quando chegou, foi encaminhada para a zona da Covid-19. A médica que viu a sua mãe disse que ela “assim que caiu, devia ter vindo logo porque ela partiu o punho e tem o joelho fraturado. Como ficou muito tempo sentada, sem a atenção devida, fez uma infeção generalizada e os órgãos entraram em falência”. O teste à covid-19 estava negativo. Gracinda diz ainda que a sua mãe estava com uma “profunda tristeza, segundo a médica, porque deixou de estar acompanhada… tudo por causa da pandemia!”. Nessa noite, a sua mãe faleceu. Gracinda nunca mais a viu.

Hoje, quando vai ao cemitério, pergunta-se “se é mesmo ela que ali está. Não a vi, não a senti, não sei como ela foi… nunca mais a vou ver”.

Gracinda revelou que vai sempre ficar na dúvida do que podia ter sido feito de diferente se a sua mãe não tivesse falecido nesta época da Covid-19.

Nita Barracho

Nita Barracho perdeu o seu pai em junho. Estava num Lar de Idosos, depois de várias quedas e de fraturas que necessitavam de vigilância constante. Nita revela que “mesmo já no lar, o meu pai estava sempre a ir e a vir do hospital, e cada vez piorava mais. Desde a pandemia, nunca mais o pude acompanhar”. Enquanto lá esteve, o pai de Nita foi sucessivas vezes ao hospital e em todas ficava em confinamento e realizava o teste da Covid-19. Da última vez, já entubado, Nita Barracho percebeu que a situação do pai estava a piorar. “Ele já não saia dali e pedi, por favor, que me deixassem ver o meu pai”.

 

“Sabia que ele já não saia dali e pedi, por favor, que me deixassem ver o meu pai.”

– Nita Barracho

 

Perder um familiar nunca é fácil. O processo é duro e o reconforto ajuda a ultrapassar a hora da dor. Em época de Covid-19, esta dor multiplica-se. Para Nita Barracho, fica sempre a incerteza “porque o meu não morreu com aquele vírus, mas mesmo assim eu não sei se é o meu pai que ali está e não me despedir dele vai ser uma dor que fica para sempre”.

Mariana Calado

Mariana Calado perdeu a sua tia-avó. Recorda que “ela era aquela pessoa que estava sempre com a irmã, a minha avó, no Natal, a fazer os doces. Contou-me muitas histórias e ensinou-se muito”. Mariana diz que são as pequenas recordações que causam mais saudade. Expressa a revolta por não “ter tido a possibilidade de me despedir dela no lar e nem no hospital”, assumindo que não via a tia-avó há muito tempo e que ela não percebeu o motivo. Para ela, uma perda assim é algo ainda mais marcante e deixa demasiadas questões sem resposta. 

Mariana acha revoltante “não existir a mínima chance de haver uma abertura para que se possa pelo menos olhar para os nossos familiares uma última vez”.

 

“Ela era aquela pessoa que estava sempre com a irmã, a minha avó, no Natal, a fazer os doces. Contou-me muitas histórias e ensinou-se muito”.

– Mariana Calado

Mariana confessou que custa sempre perder alguém, mas que “um falecimento em época de Covid-19, mesmo que não se morra do vírus, deixa um sentimento de dever por cumprir porque parece que falta humanidade”  naquela que será a hora do último adeus. 

Vítor Tavares

Vítor Tavares perdeu o seu pai em época de pandemia. Não morreu de Covid-19, mas com patologias que já tinha há uns anos. O pai de Vítor faleceu em casa, por isso, “nessas condições, ainda me consegui despedir dele e dar-lhe o último beijo, mas a partir do momento em que o caixão foi fechado, já mais ninguém o viu. Nem as netas, minhas filhas, nem a mãe dele, que ainda era viva”. No velório do seu pai, Vítor diz que houve o mesmo tratamento que os doentes da Covid-19 têm e apenas “meia dúzia de pessoas vieram prestar homenagem porque não era permitido mais, nem no velório, nem no cemitério”.

 

“A partir do momento em que o caixão foi fechado, já mais ninguém o viu…”

– Vítor Tavares

 

Na cerimónia fúnebre, não houve missa nem cortejo. No enterro, não foi permitido abrir a urna. Para vítor, a dor que estava a sentir, tornou-se ainda mais difícil de suportar devido à situação, embora concorde que “infelizmente, quem morra da covid-19, por causa do vírus, se tenha que adotar esses procedimentos, mas as outras pessoas, que morrem devido a outras doenças, no meu entender, não tinham que ter o mesmo tipo de funeral. Não é digno nem para quem fica, nem para quem vai…”.

Madalena Martins

Madalena Martins perdeu a sua avó. Faleceu em casa, o que permitiu a Madalena ter uma última despedida, ao contrário do que se sucede a quem perdeu o familiar no hospital ou no lar. Madalena recorda com saudade a sua avó, que “cuidou das minhas filhas enquanto eu não pude. Foi uma segunda mãe para mim e para elas. Vou ter muitas saudades”. Lamenta não poder velar a sua avó, nem lhe “dar um último toque no rosto. Ela esteve ali sozinha a noite inteira. Devíamos estar ali, ao lado dela, uma última vez”.

Madalena revela que, na noite anterior ao seu falecimento, chamou a ambulância porque a sua avó não estava bem. Ela recusou ir e ficou em casa. Madalena pensa que “ela sabia que ia partir e queria ir em paz, no sossego da casa dela, e não no corredor de um hospital, no meio desta catástrofe pandémica”. A sua avó faleceu na véspera de Natal de 2020. Madalena diz ainda que a sua dor “foi aumentada por tudo, pela época em que ela faleceu, pelo dia do ano em que aconteceu. Eu estava preparada, porque ela já tinha uma certa idade, mas ao mesmo tempo não estava… não queria que tivesse sido assim. Ela merecia mais e eu queria ter dado mais”.

 

“Eu estava preparada, porque ela já tinha uma certa idade, mas ao mesmo tempo não estava… não queria que tivesse sido assim. Ela merecia mais e eu queria ter dado mais”.

– Madalena Martins

 

Não concorda com o modo de procedimento do funeral das pessoas que morrem sem a covid-19, uma vez que “há a possibilidade de colocar um vidro ou de existir qualquer tipo de afastamento. Custa não tocar, mas ainda custa mais não poder olhar e dizer um último adeus”. Para Madalena, a covid-19 “tirou muito mais do que se pensa. Nestas situações, leva um bocado de nós, que vai sem um último reconforto e com a distância que nenhuma morte devia ter”.

As regras da DGS

A realização dos funerais tem de obedecer às normas da DGS, sem exceções e que, desde o início da pandemia, “muitos familiares optam pela hipótese da cremação”, explica José Maria Bonacho, proprietário de uma funerária. Para quem faleceu agora, neste período de segundo confinamento nacional, não existe velório. Os familiares “que antes estavam um dia a chorar a morte do seu falecido, estão agora apenas uns minutos”, refere. As Agências relevam ainda que o número de funerais, no concelho de Portalegre, aumentou “imenso”; morreram, até ao momento, 47 pessoas, infetadas pela covid-19. O gráfico seguinte ilustra esses números, desde o dia do primeiro óbito. 

 

Para o segundo confinamento, que teve início em janeiro de 2021, a DGS atualizou as normas dos procedimentos funerários das vítimas da Covid-19. O caixão poderá ser aberto “o caixão deve preferencialmente manter-se fechado, mas caso seja esse o desejo da família, e houver condições, pode permitir-se a visualização do corpo, desde que rápida, a pelo menos 1 metro de distância”, diz José Maria Bonacho. Existe ainda a hipótese de a visualização ser feita “através de caixões com visor” sendo sempre proibido o contacto com o corpo ou caixão. Continua, no entanto, a proibição do velório, nestes casos.

Nos casos de falecimento, sem ter por causa a covid-19, também é possível esta ação, dando assim a possibilidade às pessoas que estão de luto pela morte do familiar ter um último olhar e última despedida dos entes queridos.

Todos os dias, acontecem mortes. A todas horas, alguém perde outro alguém. Nos minutos, as recordações são constantes.

Dos momentos, a memória é eterna.

 

Autor: Filipa Pereira

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