Um casamento entre as mãos e a arte

Confortavelmente sentado, o senhor Celestino traz consigo a sua Joaquina, a quem pegou o vício desta arte: o trabalhar a cortiça.

“Todos sabem, todos sabem… Toda a gente sabe fazer. Até o Arménio que ‘tá lá no hospital. É contabilista. Se eu estiver à rasca, ele vem aí e desenrasca-se melhor que eu!”

Parece mentira. Como pode alguém desenrascar-se melhor que o único artesão de cortiça em Portalegre de outros tempos? Quem o conhece, perceberá o porquê.

É claro que todos sabem e aprendem com ele a manusear a cortiça, a acarinhar e a sentir a sua textura, como se de pele se tratasse… de um lado enrugada, mas do outro suave, uma textura sem igual. A vida de Celestino.

Na altura, despedido com 49 anos de idade, deixou a Fábrica Robinson, “uma coisa tão boa, mas que desapareceu para agora se carregar num botão e sair o trabalho em cortiça, todo arranjado”. Eram precisos homens, muitos, para puxar correntes, a roçar a escravatura, e levarem assim a cortiça a circular nos vários carris.

Mas com três filhos para criar, e sem nada, nada, nada. Tinha de pôr comida na mesa.

Celestino sabe fazê-lo como ninguém. Das suas mãos, nascem verdadeiras obras-primas.

A casinha modesta e pequenina, no Beco França Borges, conseguiu comprá-la com muito esforço e dedicação. Pagando à Caixa, os 35 contos.

Tem em baixo a oficina, o mundo pequenino que durante muito tempo esteve a abarrotar. “Enche a vista ao cliente”, diz Celestino.

Mas a força da economia local obrigou-o a agir. Fundou um negócio familiar. Criou uma lojinha favorável à exposição dos seus trabalhos. Deixa-os agora respirar. A filha cuida da loja, mas ele… Ele quer continuar no seu cantinho, junto às placas de cortiça, a raspar, colar, bater, cortar e retocar as suas artes em cortiça.

O talhante e o cauteleiro

Casado há 66 anos, vive em Portalegre e conhece-lhe muitas "estórias". Daquelas de outros tempos, outras vidas, outras gerações já vividas.

No tempo do “bom companheirismo”, em que todos se ajudavam conforme pudessem, e que o pouco que tinham chegava para uma vida recheada, o Celestino Botelho era um grande admirador das suas gentes.

83 primaveras, bem vividas e que estão ali para as curvas. A memória não lhe falha e o que mais gosta é de falar e perceber a juventude dos dias de hoje. Porém, Celestino não esquece as peripécias de antigamente.

Contador de histórias nato. Há uma que lhe chega à mente.

Naquele dia, sexta-feira, saía o “jogo da sorte”, a lotaria. Um cauteleiro que vagueava com “um bilhete e meio na mão”, não o conseguia vender, e se assim não fosse, perderia o dinheiro investido. “O homenzinho foi ter com o talhante, e perguntou se queria comprar, mas o homem do talho berrou e atirou o bilhete ao chão…” Pessoas rudes, sempre as houve. “O cauteleiro desceu a Rua Direita, desceu, desceu… Mas ninguém naquela altura ligava muito a estes jogos da sorte, e então só conseguiu vender meio-bilhete. Sobrava-lhe um bilhete inteiro para vender.” Que triste. E mais? Que aconteceu? “Voltou ao talho. E insistiu com o talhante, e o talhante berrava que não queria e chamava-lhe todos os nomes. Até que se fartou!” Sabem o que aconteceu depois? Querem saber? “Então não é que o talhante, farto de ouvir o cauteleiro a mendigar lhe comprou o bilhete inteiro? E mais. Saiu-lhe a sorte grande!” Haja sorte. A sorte é uma coisa que aparece, diz o senhor Celestino. “E o que ofereceu o talhante ao cauteleiro? Duas farinheiras! Logo duas farinheiras… Ainda que fosse dois paios, o homem assim comia alguma coisa!” Um riso tremendo. Uma gargalhada que ninguém pode pagar. A alegria de quem sabe apreciar a sua sorte.

Mas também é preciso sermos bons, e não querer mal aos outros. E mesmo que a sorte não apareça logo “temos de insistir sempre, eu pouco tenho a ganhar, porque já vivi umas três gerações, já sei o que foi a geração de Salazar, a da democracia e agora outra, e isto deu-me saber suficiente para saber o que quero.”

Celestino Botelho reaviva a memória contando histórias. Gosta de uma boa conversa. Foi o companheirismo de outrora que o tornou “esta máquina boa” como tanto diz. Um espírito jovem admirável.

E as mãos continuarão a trabalhar a cortiça, “até que Deus nosso senhor queira”. Um casamento que durará até ao fim. Seja lá ele qual for. Entre as mãos e a arte.

Ver galeria de fotos aqui: http://www.slideshare.net/esepjornal/joana-santos-fotogaleria-um-casamento-entre-as-mos-e-a-arte

Celestino Botelho, artesão, à ESEPrádio: http://radioesep.podomatic.com/entry/2014-01-27T04_38_58-08_00