"As pessoas não querem esta vida, não dá para viver"

“Vem lá chuva”. É o que todos dizem sempre que ouvem o som do realejo de Júlio Alves. Amolador há mais de quarenta anos, percorre as ruas transportando na sua bicicleta uma “oficina”. É um dos sobreviventes deste ofício que tem tendência para acabar.

O dia começa bem cedo para Júlio Alves. Apesar de a caminhada até à cidade não ser muito longa, a rotina manda levantar. Não tem um horário a cumprir nem um patrão à sua espera, mas a necessidade de sobrevivência também dá ordens. Hoje, as ruas da zona histórica da cidade de Portalegre vão ser o seu local de trabalho.

De bicicleta pela mão, Júlio Alves dirige-se até ao largo do Semeador. Como é habitual, antes de começar a percorrer as ruas estreitas da cidade, há sempre tempo para um café e dois dedos de conversa. O sol está encoberto e muitas são as nuvens que o acompanham. Hoje, coincidência ou não, o velho ditado “vem lá chuva”, sempre proferido quando passa um amolador, vai revelar-se verdadeiro. De facto, pelo final da manhã, a chuva deu ar da sua graça.

Júlio Alves é amolador. “Desde gaiato, comecei aos treze anos”. Não chegou a completar a antiga terceira classe e aprendeu esta arte com o pai, que também era amolador. Tem seis filhos e todos eles conhecem o ofício mas só um lhe seguiu as pisadas. “Anda a trabalhar por fora mas às vezes também vem aqui”, explica o amolador.
Com 55 anos de idade, é um dos poucos e raros profissionais desta área. Não conheceu outra profissão e admite gostar daquilo que faz. “Nunca calhou eu ter outro trabalho, sei lá, todos nós temos um destino e o meu foi este. Ando à minha vontade e ninguém manda em mim”, acrescenta. “Para se ser amolador é preciso ter vontade e gosto por aquilo que se faz”.

Sempre que sai para a labuta, Júlio Alves leva consigo o seu material de trabalho. “Só com isto é que a gente consegue trabalhar, não é verdade”. No assento de trás da Bicicleta transporta uma pequena caixa de madeira com um alicate e um martelo, entre outras ferramentas, e uma roda de esmeril para afiar as tesouras. Presas na bicicleta, leva também velhas varetas de chapéus-de-chuva que as pessoas lhe vão dando. São utilizadas para arranjar outras “sombrinhas”. Por fim, este amolador, tal como todos os amoladores que ainda vagueiam as ruas por todo o país, transporta uma gaita.
“Dantes eram de madeira mas agora são de plástico.

Tenho lá outra em casa para quando esta se estragar que comprei em Lisboa. Aqui não há à venda nem em cidade nenhuma. Só em Lisboa e mesmo assim já há poucas pois não têm saída”, explica Júlio Alves. Aprendeu a tocar com o pai e continua a emitir o mesmo som que este lhe ensinara. “É um som típico de todos os amoladores, uns sabem melhor outros sabem mais mal”. Não precisa de apregoar para avisar as pessoas de que vai passar pois “basta o apito” para o identificar.

Uma arte com os dias contados

Júlio Alves não tem salário mas a profissão de amolador é o seu único meio de sustento. “Dá agora para sustentar! Tem dias que um gajo não faz nada e isso sucede-se muitas vezes”, desabafa o amolador. “Dantes éramos mais, mas também aparecia mais trabalho”. A primeira faca que afiou rendeu-lhe 25 tostões. Hoje já leva cerca de dois euros e cinquenta cêntimos pela mesma tarefa. Os preços variam conforme o trabalho e o estado dos objectos.

“Só faço o preço depois de ver o material”. Com tristeza, Júlio Alves considera que “ser amolador é uma arte com os dias contados. Já não se faz nada disto, as pessoas não querem esta vida porque assim não dá para sobreviver”.
Ainda hoje, Júlio Alves utiliza os mesmos instrumentos que se usavam no tempo do seu pai. Muitas facas, tesouras e chapéus-de-chuva lhe passaram pelas mãos. Entre um cigarro e uma sopradela na gaita, aproveita para descansar. Os clientes, alguns ainda do tempo do seu pai, são poucos, o caminho é longo e os anos já vão pesando. A passos lentos, sempre de boné na cabeça, Júlio Alves caminha pela cidade em busca de trabalho, quer chova quer faça sol. Usa sempre sapatos confortáveis pois a caminhada é longa e cansativa.
Uma vez que “nem sempre as coisas se estragam”, costuma mudar frequentemente de local. Por vezes, viaja para outras zonas do país com o seu filho, em busca de trabalho. “Até já fui para a Beira Baixa. Vou ao Deus dará, sem destino e passo muitas noites por lá”. Nem sempre o negócio “por outras bandas” é rentável mas “a gente também não adivinha”.

“Antes eram mais artistas”

Francisco António Bagorro, de 84 anos, ainda se lembra do tempo em que “a gaita se ouvia constantemente”. “A minha santa mulher recorria muitas vezes aos serviços do amolador que passava na nossa rua”, refere o reformado da Guarda Republicana. “Hoje já há casas próprias para esses serviços mas antes eram só esses homenzinhos”. Francisco Bagorro lamenta o facto de a profissão estar a desaparecer mas considera que “antes eram mais artistas. Era um ofício mais curioso em que cada um aprendia por si. Hoje não são tão bons”.

Na sua opinião, actualmente fica mais barato “comprar novo do que arranjar velho. É como os sapatos, pôr meias solas é quase o preço de uns sapatos novos. Deita-se fora e pronto”, conclui o reformado.

“Eles agora passam muito menos vezes”, refere Adriana Cordeiro, de 72 anos. “Não dá a conta, vale mais comprar as tesouras do que mandá-las arranjar. Eles agora já levam um conto de reis por afiar uma tesoura”. Adriana Cordeiro recorda o tempo em que os amoladores, em vez de uma bicicleta, empurravam um carrinho com uma roda de uma carroça. “Mais dia menos dia, isto vai acabar. Este modo de vida não dá para sobreviver”, acrescenta a septuagenária.

Quanto ao velho ditado popular, “temos chuva”, ninguém sabe qual a sua origem. No tempo dos seus pais e avós era habitual dizer-se quando se ouvia o som do realejo. Apesar de nem sempre chover à passagem do homem do realejo, o ditado permanece imutável.