“Somos ciganos, mas temos nome”

As velharias e as árvores altas dão forma a uma pequena praceta à beira de um dos caminhos que nos deixa chegar e partir de Portalegre. Num ângulo reto, surge um alto edifício onde, por detrás do vidro de uma das janelas principais debruadas a madeira branca, os olhos duvidosos de quem aparenta assumir o estatuto de patriarca, seguem os pés desconhecidos que pisam o seu território. O seu cabelo branco, em contraste com a sua pele escura, impõe respeito e o seu corpo mantem-se imóvel a qualquer saudação. A vigilância não termina até chegar uma mulher, de saia comprida e cabelo longo enrolado junto à cabeça, que pergunta o que pretendemos.

Não hesitou e esticou o braço em direção à única porta aberta, de onde nos aparecera, para entrarmos. O sofá em napa amarela, que ocupava toda a parede de entrada, assegurou conforto durante aquela próxima hora.

“Somos ciganos, mas temos nome”, respondeu Carla quando foi questionada se era alvo de preconceito por pertencer à etnia cigana. A habitual ida ao supermercado pode assumir outras proporções porque “se houve um roubo, foi o cigano. E praticamente não são os ciganos que roubam. Quem age mal são as outras pessoas e depois culpam os ciganos, porque somos ciganos. Os ciganos não fazem mal. É mais a fama.”

Ainda que tenham orgulho em ser ciganos, gostavam que a sociedade entendesse que, independentemente das regras e dos ideais que os regem, são acima de tudo seres humanos.

A curiosidade e as dúvidas deram pernas ao desenrolar da conversa. Nenhum assunto se revelou tabu, nem foi demonstrada hesitação em fase de resposta.

Na etnia cigana existe uma espécie de juiz, o povo cigano mais velho, que toma as decisões, que decide as sentenças, quando é desrespeitada a sua cultura. “Entre nós, chamamos-lhe os ciganos”.

As regras antes, durante e depois do matrimónio

Carla casou-se com um homem da sua etnia. Com o homem com quem se queria casar. Hoje em dia a oportunidade de decidir com quem se quer passar a vida, de amar quem o coração nos manda, é permitida na etnia cigana. Mas não era assim há algum tempo atrás. E quem o desrespeitava, ou sofria as consequências, ou fugia.

De casa, da família, da visão de quem os conhecesse.

Numas palavras fugitivas, Carla deixou escapar que optou pela última hipótese. Foi só. Rematando que, ainda assim, é bem pior o casamento entre um membro cigano e outro que não pertence à etnia cigana. Que, isso sim, “não é perdoado”. De igual modo, a fidelidade sexual da mulher para com o homem é intrínseca num casamento cigano. “Temos de ir virgens para o casamento. E depois, nos três ou quatro dias de festa, todos os ciganos esperam pela noite. Mostramos através de um pano como éramos virgens. Se assim não for, nós não ficamos com essa pessoa. Somos expulsas. A nossa família já não nos aceita em casa. Depois temos de começar uma vida nova, sozinhas. Sem a família, sem os ciganos.”

Em nenhuma destas palavras Carla mostra reprovação ou tristeza. A explicação é sempre “porque é assim e temos de respeitar”. As razões não existem, apenas a tradição e o cumprimento intransigente das regras.

Gerações…

Carla é esposa, mãe de duas crianças e dona de casa. Portanto, Carla não corta o cabelo porque os ideais ditam que o marido não deve dar autorização, e não dá – “o meu marido não deixa”. As suas filhas pequenas já o levam longo. Em tons de dourado, como o da mãe, brincam na rua entre gargalhas e gritos de criança, ao sabor do vento, indiferentes ao que ali é posto na mesa.

A permissão para que a tesoura dê nova forma ao estilo comprido e direito do cabelo das mulheres ciganas é concebida apenas quando são viúvas. “Quando somos viúvas temos de cortar o cabelo. E o marido leva o cabelo no caixão. Nunca podemos tirar mais aquele luto. Vestimo-nos de preto, estamos um ano ou dois sem comer carne, não podemos ver televisão, não podemos ouvir música, temos de andar com lenços, xailes, meias, roupa rodada”.

O tom da sua voz demonstra que o rol de mudanças, após a morte de um ente, é extenso. Com todas as suas lacunas, Carla remata a sorrir dizendo que “é a nossa religião e respeito-a muito. Somos um povo muito unido. Gosto muito de ser cigana. Adoro.”