Para lá do alcatrão, entre badalos de cabras, vacas e ovelhas

Após curvas e contracurvas, de declive acentuado, entre campos longos e verdes, repletos de trabalho e dedicação, conhece-se outro lado de Portalegre. As estradas de alcatrão enveredam em caminhos de terra batida; o barulho dos carros dá lugar aos badalos das cabras; o latir dos cães ecoa no silêncio genuíno do monte.

Perto do cimo da serra de São Mamede, encontra-se a Quinta dos Cantarinhos. Os portões são de um vermelho enferrujado, abertos como que a dar as boas vindas. O caminho é coberto pelos ramos robustos dos plátanos e a receção não é a mais afável. Os guardas da casa impõem respeito com os seus dentes aguçados e demasiado visíveis. Mas aparece a dona Rosa, com o seu chapéu de palha e bata às flores coloridas, e logo acalmam. “Andava a sachar feijão ali na horta”.

Desde os 12 anos que se lembra da vida de campo. O primeiro contacto foi os “36 dias na apanha da azeitona, nos ramos mais baixinhos, que eu tinha medo de cair”, ainda uma criança e com pouco calo da vida.

“Criei-me na Ribeira de Arronches, lá daquele lado. Casei e depois vim para aqui. Já há 41 anos que aqui estou. É quase uma vida”. Uma vida “dura. Em casa e fora, na horta. Ajudar no gado, guardar o gado. Faz-se de tudo um pouco”.

A dona Rosa partilha a azáfama do trabalho de campo. “Quando chega ao cruzamento corta para cima. Logo além, na direção dos eucaliptos grandes. Chega lá adiante são dois caminhos. Um para o lado esquerdo, outro para o direito. Depois vai pelo de cima. Lá para uns 50 metros ou isso, aquilo sobe uma calçada para cima, corta para o lado esquerdo, está lá uma carrinha de caixa aberta”. A carrinha do senhor Carrapiço, assim conhecido. Mas “eu não me assino por isso. O meu nome é João Manuel da Silva Raposo”.

Apenas os badalos da cabra se ouviam, que olhavam atentas ao desconhecido, com os cães à defesa, na Quinta da Relva.

João, marido da dona Rosa, diz que lhe nasceram os “dentes à roda desta vida. Criei-me lá na Ribeira de Arronches, mas há 40 e tal anos que moro aqui.”

Rosa Pires e João Raposo casaram-se há 41 anos para ela, há 40 e tal para ele. E há igualmente 41 e 40 e tal anos que vivem “neste monte”. Com filhos e netos criados, assistem à mudança do país, indignados. Porque a honestidade de outrora é substituída por “vadios e gatunos”, como diz o senhor João. “Os políticos que nos governam é que deviam ver o que é a vida. Não conta o livro. O que conta é andar cá na vida. Isto não é só o saber ler. Tudo estuda, tudo estuda, tudo estuda, mas não há emprego para todos. Antes do 25 de abril havia trabalho para toda a gente. Toda a gente tinha alguma coisa para comer. Agora não”.

Embora revoltado com a forma como é governado o nosso país, João não deixa de trabalhar por isso. Tem um terreno “até lá aos Reguengos e até à Serra de São Mamede. São para aí uns 300 ou 400 hectares”. Com 78 anos, ele e a mulher têm apenas a ajuda da filha (e dos seus três netos de 6, 7 e 11 anos, que “andam na escola, mas também já aprendem estas coisas, que é a verdadeira vida”, como conta o seu avó) e de José Maria, um caseiro natural “de Alegrete, mas já aqui estou há 30 e tal anos. Há 30 e tal anos que trabalho aqui”.

Os amigos de longa data, João e José, recordam que “antes trabalhavam aqui dez e quinze pessoas. Mas agora não. Isto está uma miséria”.

 

O ordenado

Vão vivendo à conta do que produzem. Rosa diz que “vem um negociante aqui comprar gado, de ao pé da Covilhã. É o Zé Castelejos. Vendemos o leite para Tolosa há 30 e tal anos, vendemos batata e os outros legumes aos intermediários” que vendem no mercado.

Rosa e João são uma das fontes que tentam fazer frente aos produtos vendidos nas grandes superfícies comerciais, onde lhe poem “produtos para crescer. Aquilo também não faz bem à gente. Crescem em 15 dias”, conta dona Rosa. No entanto, como diz o seu marido, “as pessoas não querem. Mandam vir tudo de fora. Eu preferia dar 100 escudos por um quilo de batatas de cá, do que 50 de lá. Mas isso sou eu. São coisas puras. É muito melhor!”

 

O dia-a-dia

“Todos os dias é isto. Levanto-me cinco e meia, um quarto para seis. De manhã como uma frita banhada com mel. É uma fatia de pão frita. Aquilo é bom. Ó depois bebo o café. Lá para uma, almoço. Jantar? Lá por essa meia-noite ou perto. E é quando estou mais descansado e como mais. Eu sei que faz mal, mas olhe”.

Palavras como domingos, folgas, férias, dias de descanso, não existem no dicionário da vida de João. Quando as ouve, ri-se. “Se não quem é que cuida dos animais? E eu também não gosto dessas coisas. Praia e assim. Não. Eu gosto é de estar aqui”.

O mais longe que conheceu foi o centro de Portalegre, onde atualmente faz as suas compras porque, como conta dona Rosa, “dantes aqui no Reguengo havia quatro ou cinco mercearias, mas agora já não há nada”.

Com uma vasta área de terreno, 270 e tal cabras (que conhece todas uma por uma, “pela cor, pelo tamanho, é conforme. Tenho de as levar aos seus bezerros”) e outras tantas vacas e ovelhas, Raposo sente-se capaz “de orientar o mundo inteiro. Eu ordenho cabras, guardo cabras, semeio batatas, agarro num trator, pego numa enxada. Sei fazer tudo. Todos os dias aqui estamos, nesta vida. E o qu’eu trabalho”.

Foi entre o pôr-do-sol quente de um verão ainda para chegar, num princípio de noite, que João terminou mais um dia de trabalho, a carregar as bilhas do leite das cabras para a carrinha com José Maria. Rosa acabou de sachar o feijão-verde e foi fazer o jantar. Amanhã o sol nasce outra vez.