Revelar os rostos escondidos

É cada vez maior o número de crianças que são vítimas de abandono, de maus tratos, negligência familiar e abusos sexuais. Por detrás de cada rosto há uma história triste para contar. Em Portalegre há duas instituições que recebem estes meninos e que fazem tudo para lhes devolver a alegria que julgaram perdida.

“Bom dia! Eh! Eh! Entrem”. É assim com sorrisos irradiantes, muita simpatia à mistura e uma certa azáfama que as crianças que frequentam o internato de Nossa Senhora da Conceição (feminino) e do Internato Distrital de Santo António (masculino) recebem quem as visita.
Palavras como diálogo, compreensão, atenção, presença humana é tudo o que estas crianças necessitam e procuram constantemente junto daqueles com quem diariamente convivem.

As crianças que frequentam estes internatos são de várias idades e de várias terras do distrito de Portalegre. Algumas delas foram vítimas de maus tratos, outras de abusos sexuais, negligência por parte dos seus pais, impossibilitadas de terem uma vida aconchegada de amor e carinho, junto do seu núcleo familiar.

“São vários os motivos que levam a que estas crianças venham cá parar. Algumas delas entram ou por via do tribunal, situações de maus tratos, negligência ou pelas comissões de protecção de crianças e jovens, que neste momento estão a ser implementadas por vários concelhos do distrito”, explica Gonçalo Pacheco, director do Internato Distrital de Santo António.

Quando as crianças são colocadas por intermédio destas associações, implica o consentimento por partes dos pais caso eles existirem. Uma situação imposta pelo tribunal resulta desse consentimento ou através dos serviços da Segurança Social.

Instituições estão sobrelotadas

O Internato Distrital de Santo António e o Internato de Nossa Senhora da Conceição têm capacidade para receber 30 rapazes e 30 raparigas distribuidos por 28 camas e duas para alguns casos de emergência que possam surgir.

Ambos os internatos, neste momento, já excederam a capacidade de alojamento, o que demonstra a grande procura que têm.
As chamadas telefónicas não param. Estas instituições têm uma lista significativa de crianças que desesperadamente procuram ajuda. Todos os dias chovem imensos pedidos de várias zonas do país.

"Infelizmente não conseguimos dar resposta a todos os pedidos que nos são feitos. Contudo, tentamos que estas crianças encontrem nesta casa um lugar onde possam estar à vontade, onde possam ver e sentir que têm alguém que as protege e onde tentamos, dentro das nossas possibilidades, que haja sobretudo amor, compreensão e carinho”, diz Ilda Faria, directora do Internato da Nossa senhora da Conceição.

Estas duas instituições só recebem jovens pertencentes ao distrito de Portalegre. Segundo a lei podem entrar todas as crianças a partir dos seis anos e permanecer até os 18. Para Gonçalo Pacheco, “isto não significa que quando um jovem complete os 18 anos, tenha as malas à porta, porque nestas instituições tentamos que a saída de cada jovem seja acompanhado por um projecto de vida o mais sólido possível ou então, pelo enquadramento na família ou na comunidade. Desde o assegurar um emprego ou um quarto onde possa viver".

A Sara, tem 15 anos e é natural de Portalegre, frequenta o internato de Nossa Senhora da Conceição desde os seis anos. “Eu e os meus irmãos viemos para o internato desde muito crianças. A minha mãe já faleceu e o meu pai não tinha condições para cuidar de mim nem dos meus irmãos. Então tivemos que vir para esta instituição”.

Paulo de 13 anos e Pedro de 9 anos são os irmãos mais novos da jovem Sara e tal como ela passam os seus dias no internato masculino. Também passaram a infância longe da sua família. Tal como a Sara nunca souberam o que é ter o carinho e amor dos seus pais.

A jovem, para além de estar no Internato não desistiu do seu sonho: ser estilista ou arquitecta. "A paixão pela moda e pela arquitectura começou desde o momento que vim para o internato”, esclarece a jovem.

A Língua Portuguesa e o Inglês são as suas disciplinas preferidas. Sara frequenta o 9.º ano e nos intervalos aproveita para desenhar. “Tenho todos os dias um tempo para o estudo, das 17 horas às 19 horas. Neste tempo aproveito para fazer os deveres, com a ajuda da professora de estudo, e sempre que há tempo pego no meu bloco de desenho e no lápis e dou asas à imaginação”, confessa. Nos tempos livres aproveita para sair, conversar e estar com os seus colegas. “ Às vezes encontramo-nos nos Covões, bairro em Portalegre, na casa de uma colega para conversarmos e jogarmos à bola”, explica Sara. O futebol é outro dos seus «hobbies» preferidos, a jovem tal como outras colegas suas, participa num campeonato de futebol a nível distrital. Nas férias da Páscoa não dispensa as idas às piscinas municipais e às praias fluviais. Embora esteja separada dos irmãos, há sempre tempo e disponibilidade para estar com eles. "Sempre que podemos aproveitamos todas as oportunidades para estarmos juntos. No fundo é como se estivéssemos unidos, quando posso vou lá e eles vêm cá. Ainda ontem o meu irmão veio buscar-me para irmos ver o jogo de futebol dos rapazes do internato”.

Nove anos de abandono

O António, 15 anos, frequenta o 10.º ano, e é outro jovem entregue ao Internato masculino. Conhece esta casa desde muito cedo. “Vim para aqui tinha eu seis anos. No início estive sete anos no internato feminino, e há cerca de três anos vim para o Internato Distrital de Santo António, tinha eu 12 anos" lembra o jovem.

“Levanto-me, faço a minha higiéne, desde o tomar banho, vestir, comer. De seguida vou para a escola às 8h45 onde permaneço até às 18 horas. Quando regresso das aulas vou para a sala de estudo, aí faço os deveres da escola e estudo um pouco. Após o jantar aproveito para jogar à bola com os meus colegas e ainda tenho tempo para ver televisão”, conta.

Estas crianças contam ainda com o apoio de duas professoras, uma destacada pelo Ministério da educação para o internato feminino e outra para o masculino, que os acompanha diariamente nas várias actividades que têm de desenvolver.

Beatriz, professora há 5 anos no Internato da Nossa senhora da Conceição, acompanha estas crianças durante todo o dia. Para a docente “lidar com estas crianças é uma experiência única, muito gratificante do ponto de vista humano. Ninguém é o mesmo depois de passar por aqui. Trata-se de uma lição de vida onde todos nós apreendemos, faz-nos sentir mais humanos para com estas crianças que carecem apenas de um gesto, uma palavra amiga, de aconchego”. A preocupação, o amor e a amizade são alguns dos sentimentos que esta professora nutre por estas crianças.
"Elas para mim são alguém de quem gosto muito e preocupo-me. Por vezes, no Inverno, se uma delas sai sem guarda-chuva, se está doente, se não tomou pequeno-almoço, para mim é um drama. Esforçamos para que elas sejam iguais aos outros. Se for preciso movemos montanhas para que elas tenham tudo, desde o calçado, o vestuário, material escolar”, conta a professora.

Apoio de psicólogos

Para além dos directores, das professoras de estudo, estas instituições contam ainda com a dedicação e empenho de uma equipa técnica constituída por sete monitores, uma animadora sócio-cultural que desenvolve junto destas crianças uma série de actividades em comum com os dois internatos, uma psicóloga e uma assistente social que trabalham em comum com as duas instituições.

Segundo Cristina Xavier, psicóloga, ”a nossa maior preocupação é a de proporcionar um ambiente à volta delas o mais saudável e o mais aproximado ao de um ambiente familiar”.

O trabalho do psicólogo nestas instituições não é o de fazer uma psicoterapia de fundo, mas sim o de atenuar os conflitos entre os jovens, apoiá-los em situações de crise, ensiná-los a aprender a lidar com sentimentos menos bons, tais como a frustração, a solidão, a revolta.

“Na maioria dos casos, as problemáticas destas crianças relacionam-se com alguma coisa que falhou a nível familiar, não só as situações de negligência, de abuso sexual, de maus tratos mas também devido a situações de violência entre os pais e filhos", acrescenta a psicóloga.
Estas crianças, dia após dia, revelam dons e qualidades que não podem ser esquecidas. Maria Alexandra, natural de Elvas, aluna dos currículos alternativos, é “dona” de um grande talento e habilidade. Desde muito nova, cose todo o tipo de acessórios para si e, por vezes, para oferecer às suas colegas.

“O gosto pela costura acompanha-me desde muito cedo. Inicialmente aventurei-me a fazer umas malas, comecei a cortar os tecidos e os feichos das calças de ganga que já não prestavam. De seguida peguei num lápis e num bloco de desenho e comecei a desenhar as peças, desde as malas de ganga, outras às flores, sacos de cama e uma almofada azul às riscas para as bonecas. Houve um dia em que tive a ideia de cortar uma tira de umas calças azuis e decidi fazer um colar para pôr no pescoço, esse ofereci à uma amiga minha”, refere a jovem Alexandra. Todos na instituição conhecem o seu talento, “as minhas colegas trazem os panos das roupas usadas, dizem o que querem e pedem para eu fazer-lhes as malas, os fios”, conta a aluna. Apreendeu a costurar desde muito cedo e por livre iniciativa, “quando estava em casa ia vendo a minha mãe a coser as peças de roupa e acabei por apreender sozinha”, afirma a jovem.

Dados Históricos

O Internato Distrital de Nossa Senhora da Conceição foi fundado em 8 de Dezembro de 1863, o Asilo para a Infância Desvalida do Distrito de Portalegre numa cerimónia religiosa na Sé Catedral desta cidade, tendo sido consagrado a Nossa Senhora da Conceição desde então a sua padroeira.
Em 5 de Fevereiro de 1964 passou a chamar-se Asilo de Nossa Senhora da Conceição. Fixou-se no actual edifício do Internato em 6 de Maio de 1888 e em 7 de Maio de 1988 mudou a sua designação para a actual, Internato Distrital Nossa Senhora da Conceição.