Barbeiros de Portalegre em vias de extinção

Contam-se por uma mão os barbeiros de Portalegre. À medida que os anos vão passando, aumentam os cabeleireiros e diminuem as barbearias. Os clientes são mais exigentes e as barbearias já não satisfazem os gostos mais requintados. Os “mestres” deste ofício guardam memórias saudosas do tempo em que o cabelo era cortado “à garçonne” e “à tigela”. Pelo meio ficam as histórias de quem até chegou a ser confundido “com o homem dos funerais”.

A porta número 100 da Praça da República esconde uma barbearia centenária. Entregue a nada, sem clientes nem barbeiros, rodeada de pó e teias de aranha espera, com pouca ou nenhuma esperança, a vinda de um novo barbeiro que lhe dê vida. Esta barbearia, com mais de cem anos, pertence a Manuel Chaves, o barbeiro mais antigo de Portalegre.

“Tinha dez anos quando foi para a loja do pai apanhar as barbas”, explica Maria de Jesus, esposa de Manuel Chaves há 65 anos. O pai do Mestre Chaves, como é conhecido, era também barbeiro. Dele herdou a barbearia e todos os ensinamentos do ofício.
“O meu pai faleceu quando eu tinha 15 anos mas em dois anos ensinou-me tudo e pôs-me a trabalhar”, refere o Mestre Chaves, barbeiro durante 72 anos. Fez a antiga 4ª classe e “o curso que o meu pai me deu foi trabalho”. Com 85 anos, ainda lamenta não ter continuado os estudos na Escola Industrial. Revela orgulhosamente que na escola primária foi aprovado com distinção. “Não sei onde está o diploma, se não mostrava-lhe”.

Mais de 20 barbearias em 1932

Em 1932, quando Manuel Chaves começou a trabalhar, havia mais de 20 barbearias em Portalegre. Agora, as que ainda existem estão fechadas. “Tantos que morreram… tantos…”, suspira. Nos primórdios, um corte de cabelo e fazer a barba rendia-lhe 15 tostões. Os clientes, que não eram nada exigentes, saíam sempre satisfeitos e, como era tradição, deixavam um “copo” pago na taberna ao lado. Apesar de ser de “poucas falas”, confessa que na sua barbearia ouvia muitas confidências. Lá dentro, o ambiente era familiar.

“O que se usa hoje é quase igual ao que se usava antigamente”, diz o Mestre Chaves. As meninas cortavam o cabelo “à garçonne” e os meninos “à tigela”. A maioria das vezes era o barbeiro que decidia como cortar. Muitos clientes iam também ao seu estabelecimento fazer “um caldinho”. Este era o termo utilizado para um pequeno corte.

O que Manuel Chaves gostava menos era de fazer a barba. “Aqueles fregueses que trabalhavam no lagar do azeite, então é que eu nem os podia ver. Vinham com a cara muito gordurosa e as fardas muito sujas. A navalha quase não passava. Quando saíam, parecia que levavam uma máscara na cara, porque o resto ficava tudo por lavar”, recorda com um sorriso.

“Agora qualquer um é barbeiro”

“Agora qualquer um é barbeiro”, diz o Mestre Chaves, apelido dado por ter ensinado a muitos “gaiatos” o seu ofício. No auge das barbearias, “chegámos a ser três a trabalhar ao mesmo tempo”. Manuel Chaves abandonou este ofício no final do ano passado por motivos de saúde.
“Com 85 anos ainda me dá pena porque eu gosto muito de trabalhar”. A porta número 100, que guarda uma barbearia com mais de um século, está fechada desde o início do ano. Manuel Chaves está disposto a alugá-la mas não há barbeiro que a ocupe. “Hoje tudo quer ir ao cabeleireiro e, lá, já levam um conto e duzentos. Agora é só cabeleireiros, as barbearias vão acabar”, diz com alguma tristeza.

João Rolo, mais conhecido por João Barbeiro, também aprendeu esta arte com o seu pai que “foi barbeiro até morrer”. “Assim que saía da escola ia para ao pé do meu pai. Primeiro aprendi a afiar a navalha de cortar a barba no acentador e depois comecei a ensaboar a cara dos clientes”, diz João Barbeiro.

Tem 55 anos de idade e 40 de profissão. Os fregueses são de todas as idades, “com os clientes que tenho, vou-me governando”. Quando começou a trabalhar, por fazer a barba e cortar o cabelo levava três escudos. Hoje, 4 euros é quanto cobra por um corte de cabelo. Antes de ter o seu próprio estabelecimento, trabalhou também noutras barbearias da cidade. “Quando trabalhava no Mestre Augusto, fui das primeiras pessoas a usar a máquina eléctrica e o secador, na altura ninguém tinha estes objectos”, recorda.

Francisco Lopes é um dos seus clientes há mais de 20 anos e não troca as mãos de João Rolo por nenhum cabeleireiro. “Gosto do corte de cabelo dele, é sempre o mesmo”, diz o freguês, realçando que “também já tenho pouco cabelo”.

João Barbeiro não esquece momentos menos agradáveis da profissão. “Até já apanhei piolhos”, recorda com um sorriso. Acrescenta que “antigamente, algumas pessoas vinham para aqui com a barba de há 15 dias e nem queira saber. Tínhamos de afiar a navalha duas ou três vezes”.

“É cortar e andar”

João Rolo não tem clientes exigentes, “isso é nos cabeleireiros, aqui é cortar e andar”. “A malta nova até costuma dizer: João, molha-me o cabelo e deixa que eu ponho o gel, e eu dou-lho e eles é que se penteiam à maneira deles”.
Caso idêntico é o de Manuel Gil Costa. Tem 80 anos e desde que saiu da escola primária que se dedica a cortar cabelo e a fazer barbas. O seu tio também era barbeiro. Manuel Costa relembra os tempos difíceis da sua infância, em que eram os pais que decidiam o futuro dos filhos. “Na altura em que eu comecei, havia 23 barbearias e em cada uma delas um ou dois gaiatos a aprender”.

Nunca teve o seu próprio estabelecimento e foi barbeiro durante 20 anos no Hospital Dr. José Maria Grande em Portalegre. Hoje, já reformado, ainda vai cortando o cabelo aos seus dois filhos e aos amigos que lhe pedem.
Manuel Costa ainda se lembra de muitas histórias engraçadas que viveu como barbeiro. “Uma vez, cheguei à enfermaria do Hospital, e mandaram-me fazer a barba a um velhote. Ele não queria e começou a chorar. Chorou do início ao fim”. A enfermeira não lhe soube responder por que motivo o dito senhor não queria fazer a barba. “No dia seguinte, chego outra vez à enfermaria e o mesmo velhote vem ter comigo e diz-me: Mestre, hoje quero fazer a barba”. Manuel Costa, indignado, perguntou-lhe por que é que no dia anterior o mesmo tinha chorado tanto. “Quando eu o vi com essa bata azul pensei que você era o homem dos funerais”, respondeu o “velhote”. Manuel Costa recorda este e muitos outros casos com saudade.

Todos eles ainda guardam religiosamente o material antigo que, em certos casos, herdaram dos pais. Os anos vão passando e a geração de barbeiros não se renova. Contrariamente a outras realidades, se as barbearias acabarem não será por ausência de clientes mas sim por falta de barbeiros.