As Cotovias da Comenda ou como se divertir quando se tem mais de 60

A Comenda é uma pequena aldeia no concelho do Gavião. Quem vai de Portalegre, deve apanhar o caminho dos Fortios e, meia hora depois, há-de já lá ter chegado. Se vai de visita, aproveite a época do Carnaval ou do São João e pode ser que encontre umas jovens Cotovias a dançar livremente pelas ruas.

Está frio na Comenda. Não, está um dia de Primavera. Em Janeiro. Respira-se o ar do campo, das pequeninas terrinhas tão acolhedoras e que nos fazem lembrar o nosso cantinho e não querer sair de lá. Terra pequena, a Comenda fica lá para o fim do distrito, no concelho do Gavião. Só um expresso de manhã até à cidade e outro de regresso à tarde, serve a pequenita terra. Nos dias de semana. No fim-de-semana, … bem existe à semana. Saímos de Portalegre pela tarde e, meia hora depois, estamos noutra terra, noutra comunidade, voltada para si mas não fechada. A gente da terra, tal como a terra, é simples. Acolhe os forasteiros como quem tem algo de muito valioso para dar. E tem. Como o demonstra a D. Maria Flor e as suas catorze amigas, com toda a simpatia e ansiedade com que nos esperam. De repente, já não está frio. Ou talvez seja do aquecedor, que se juntou a nós nesta mesa redonda sem mesa e aqueceu a sala dos cursos e da formação e dos ensaios do Orfeão da Comenda. As prateleiras nas paredes exibem orgulhosamente todos os prémios e troféus conquistados pelo Orfeão. Estão cheias. As prateleiras. As paredes ainda têm muito espaço para mais prateleiras. O estrado, os quadros, os computadores, os instrumentos, não enganam. É mesmo aqui a sala das actividades da Comenda.
A D. Maria Flor não quer começar ainda. “Somos 15, faltam quatro. Eu avisei todas, fui a casa de cada uma delas. Elas não se costumam atrasar, não sei porque será.” As amigas gostam tanto do que fazem que fizeram questão de estar todas presentes para conversar um bocadinho. “Eu disse que era às cinco horas, a menina não se importa de esperar um bocadinho por elas, não?, elas disseram que vinham”, torna a D. Maria Flor. “Já lá vêm duas, estão a chegar.” “Chegou mais uma.” “Telefonou a avisar que não vem. Assim, já estamos todas. Podemos começar.” “A menina já estava à espera há muito tempo?” Quem assim se preocupa em ter tudo em ordem é a D. Maria Flor, mais uma vez: “ela é que é a nossa ensaiadora, ela é que faz as músicas, escreve as letras, as ideias são todas dela. Nós sem ela não somos nada, mas ela também não é nada sem nós! Ela é que é a nossa ensaiadora, é a nossa professora, ela ainda não disse mas nós temos que dizer!”, dizem as senhoras, quase em coro, perante a recusa da D. Maria Flor em ser a “chefe” do grupo. “Ah! Não digas isso Idalina! Somos todas! Ninguém é insubstituível!”

O Início

Quando surgiu a pergunta do porquê da ideia das senhoras se juntarem e formarem o grupo, agora que estão reformadas e já têm… “boa idade!!!!!!”, completam todas em coro, com um grande sorriso e cada vez mais divertidas, como querendo mostrar que os números só contam para os papéis. Bem dispostas, as senhoras não têm problemas quando se fala na idade. E apresentam-se, “Então começo eu: eu sou a Maria Flor e tenho 65 anos, Maria de Lurdes, 66, Idalina, 61, Lurdes, 61, Antónia, 67, Manuela, 61, Catarina, 59, Rosa, 76, Angélica, 51, Ana, 75, Rosa, 70, Ester, 73, Laurinda, 74, Rogéria, 71, Elsa, 49.”
“Este é um grupo muito alegre, muito divertido”, garante a D. Maria Flor, com o apoio das colegas que deixam que a sua mentora fale por elas. “Nós pertencemos ao Orfeão, excepto duas ou três senhoras, a Maria de Lurdes, a Idalina, a Manuela, a Angélica e a Elsa, estas senhoras não fazem parte, todas as outras fazem.” As senhoras confirmam. A palavra à D. Maria Flor: “Nos intervalos dos ensaios do Orfeão, como o nosso professor dá cinco minutos para descanso das vozes, nós começámos ‘Porque não fazemos uma brincadeira de Carnaval?’, porque elas até já faziam, aquela minha prima mascarava-se e vinha pelas ruas, todos os anos, pelo menos ela, todos os anos vinha pela rua, aí pela avenida de cima, mascarada, e fazia umas brincadeiras. E foi assim, começámos a combinar. Depois entretanto juntaram-se mais senhoras e algumas outras que fizeram a primeira marcha e até nem estão aqui, já desistiram.” “A ideia partiu da Maria Flor” “a Maria Alice estava ali na ponta e disse assim: ó cachopos, que tal fazermos uma marcha para o Carnaval?” “Ah! Bem me parecia que a Maria Alice devia estar metida nisto.” “Foi ela!” “O grupo é recente, formou-se em 2006.”, informa a D. Maria Flor.

As brincadeiras pelas ruas da Comenda não são recentes. A D. Maria Flor explica: “Aqui na nossa terra, não será uma tradição mas falava-se muito e houve sempre, mesmo dos tempos antigos, chamávamos nós as contra-danças. Eu fiz várias.” A D. Ana lembra-se de mais coisas que “fazíamos no nosso tempo, eram as comadres: mascarávamo-nos e fazíamos casamentos aí pelas ruas. E também queimávamos o boneco, fazíamos um rapaz, vestíamo-lo com calças e um casaco, enchíamo-lo de palha e depois queimávamos, era no Dia dos Compadres, à quinta-feira.” “E também fazíamos a Festa da Espiga.”
Se a ideia das brincadeiras surgiu nos ensaios do Orfeão, já o nome para o grupo – As Cotovias da Comenda – não é assim tão recente. “Há muitos anos atrás, na nossa meninice, tínhamos nós os nossos 8, 9, 10 anos, esteve cá um senhor padre que era professor de música e fazia muitas récitas com as crianças da escola. Nós fizemos bastantes coisas nessa altura e ainda aí há hoje alguns restos dessas coisas. Estamos aqui duas ou três senhoras desse tempo. Já éramos as Cotovias da Comenda e continuamos com o nome do grupo. As Cotovias nunca deixaram totalmente de existir, sempre houve algumas coisitas. Mesmo depois de estar casada, já contracenei com o meu filho. O nome é que só utilizamos desde 2006.”, explica D. Maria Flor.

O Orfeão e a participação no grupo tiram as senhoras do trabalho da casa. A D. Rosa, de 76 anos, diz que “o cantar faz parte da minha vida, sempre gostei de cantar.” A D. Idalina informa que o ensaio do Orfeão “é todas as quartas-feiras, às nove da noite.” A D. Maria Flor acrescenta que “o nosso professor já é da família, já estamos com ele há 15 anos. Eu estou desde o princípio, mais a Lurdes, a senhora Rosa e a senhora Ana. Depois outros foram chegando e outros foram indo. É assim.” Retoma a D. Idalina: “vamos aguentando com o que a gente gosta, que é para a terra não ser tão triste. Vamos a outros lados, conhecemos outros grupos. Somos uma família.”

O Espectáculo

As Cotovias, até agora, têm feito brincadeiras para os Carnavais e as marchas pelo São João. Tudo com letra, música, textos, cenários e adereços segundo as próprias ideias das quinze senhoras e feitos mesmo por elas. Este ano, o salão paroquial foi restaurado e as Cotovias já dizem que o vão aproveitar para as suas brincadeiras. Para a estreia do salão, as Cotovias prepararam um presépio vivo, por altura do Natal. “Foram umas coisinhas muito simples, porque não tivemos muito tempo para ensaiar. Foi um mês muito intenso, porque agora no Natal o Orfeão tem muitas saídas. Tivemos vinte dias. Primeiro, apresentámos o coro, com todas estas senhoras que estão aqui, cantámos canções de Natal, depois recitámos um poema do tal padre que formou as Cotovias, há muitos anos, e depois fizemos um quadro sobre a degradação dos valores da fé, da paz e do amor, e no fim fizemos o presépio com a apresentação das personagens com versos cantados.”, resume a D. Maria Flor. A ideia da apresentação foi toda do grupo “dela, dela, da Maria Flor!”, as senhoras insistem em atribuir os louros a quem de direito. “O cenário e os fatos foram todos feitos por nós, algumas senhoras não sabem muito bem de costura, por isso fizeram outras coisas. Fomos todas vestidas. Houve dias que estivemos a pé até às 4 e meia da manhã. E no dia do espectáculo algumas senhoras e a Cristina, a filha da Manuela, estiveram na minha casa até às 6 da tarde, ora, tínhamos de estar no salão às 7 e meia!”, conclui a D. Maria Flor. Antes do espectáculo, estavam nervosas? “Muito, muito, até o próprio artista profissional às vezes fica nervoso.” “Então não estava?” “É normal, é normal.” “E depois fica sempre qualquer coisa por dizer, aquelas coisas de última hora. As três judias levavam, cada uma, uma bilha, e só eu é que levei a minha.” “Não, não, eu também levei!” “Levaste?” “Até a pus logo na escada para saber qual era a minha.” “Eu é que não levei, a bilha foi passear até ao salão e não serviu.” “E eu fui comprar uns sapatinhos da cor do vestido para ir a combinar e esqueci-me de os calçar, ninguém me disse nada e eu levei os meus sapatos!”
O espectáculo resultou como as autoras o tinham imaginado. “Resultou, resultou e de que maneira!” As pessoas da terra “gabaram muito as roupas que nós levávamos vestidas, disseram todas que estávamos espectaculares. Fartaram-se de aplaudir.” “Muitos aplausos” “O salão estava cheio, cheio!” “Queriam que nós continuássemos!” “Já querem mais para o Carnaval, para o São João!” Os sorrisos aqui iluminam-se, a sala alegra-se com a recordação do espectáculo. Tudo foi feito pelas Cotovias, sem ajudas. “Não, não, não temos ajuda.” “É tudo nosso, com mais ou menos dificuldade, lá vamos arranjando um mealheirinho para estas coisas.” “Damos todas um donativo logo no início, o que sobra divide-se, o que falta põe-se, e pronto.” “Os tecidos vamos busca-los a Portalegre.” “Fomos lá duas vezes!” “Mas tudo se fez com esforço, muita amizade, muito amor pelo grupo, temos mesmo muita força de vontade.” “Com muito frio e muita chuva, mas tudo se passou!”

A Digressão

Aos ensaios ninguém falta, e tudo é preparado ao pormenor. A D. Maria Flor conta que “ensaiamos na quinta daquela senhora ali, porque é mais escondidinha, é mais fora de portas, para não se ouvir, porque nós gostamos mais de ser assim uma surpresa. Pelo menos, foi isso que as pessoas todas dizem, que quando entrámos em palco ficou tudo espantado. Até mesmo as marchas, ninguém sabe como vão ser. Só no próprio dia e no momento da apresentação é que as pessoas vêem.”
As marchas pelas ruas da terra também são pensadas de raiz pelas Cotovias. A D. Maria Flor explica o percurso das marchas: “saímos da sala de ensaio do Orfeão, vamos até ao café ali de cima, e depois vamos pela rua principal da aldeia, fazemos as nossas brincadeiras nas rotundas e nos cruzamentos, vamos até à praça, vamos a uma terrinha que fica aqui a dois quilómetros que é o Vale da Feiteira, e brincamos em dois ou três lados, tudo a pé.” No primeiro ano, em 2006, as Cotovias levaram as brincadeiras de Carnaval também a Tolosa, uma terra próxima. Apareceram de surpresa, sem ninguém esperar. As senhoras de Tolosa não esperavam as brincadeiras das Cotovias, mas gostaram tanto que, no São João, montaram elas as suas próprias brincadeiras e vieram à Comenda. No Carnaval seguinte, “combinámos, nós e elas, e vieram cá elas primeiro e actuámos pelas ruas. Depois fomos nós a Tolosa actuar com elas.” Este ano, “ainda não temos nada preparado, temos muito pouco tempo, porque fizemos o espectáculo agora pelo Natal. Futuramente, talvez pelo São João, depois logo se vê.”

A Ajuda

As Cotovias são muito conhecidas na terra. Antes da primeira apresentação, as pessoas sabiam que elas andavam a ensaiar, mas não conheciam o espectáculo. “Os maridos e os nossos familiares sabiam que nós andávamos a ensaiar”, explica mais uma vez a D. Maria Flor. E gostavam? “Gostavam? se gostavam! os maridos foram connosco de carro, levaram os carros todos, iam sempre, levaram-nos a outras terras” “a Gáfete, a Tolosa” “a Ferraria” “a Monte da Pedra”. Cristina Anjos, filha da D. Manuela, é uma das entusiastas pelo grupo. “É bom elas manterem este grupo, porque também levam o nome da aldeia a outro lado.” Mas, segundo Cristina Anjos, “como em todo o lado, há quem veja pela parte positiva e pela negativa. Mas a maioria vê como uma coisa muito boa para a aldeia. Há duas ou três atitudes contra, mas o resto tudo vê como algo muito positivo.”

As Cotovias estão prontas para receber mais senhoras. “Quanto mais, melhor!” “Até porque na marcha do Carnaval do ano passado… éramos quantos?” “Éramos doze pares ou treze, eram também crianças.” “Entraram também crianças, inclusive o meu neto, e dois miúdos com os tambores à frente e com pandeiretas.” “E também temos acordeonistas.” “Pagamos, mandamos vir e pagamos.” “Tudo pago por nós, também!” “Não julgue que temos subsídios, não temos nada.” “No primeiro ano as pessoas até contribuíram.” “É tudo pago por nós.” “O que vale é a filha da Manuela, a Cristina.” “E o marido, o Hugo.” “Sim, sem eles nós não conseguíamos fazer muitas coisas.” A D. Maria Flor dá o exemplo do espectáculo do Natal. “O salão está muito bonito, está pronto. Só que o palco está despido, nem pano de boca tem. Claro que era impensável nós fazermos uma coisinha, por mais simples que fosse, sem o pano de boca. Andámos aí uns quinze dias a pensar ‘Fazemos ou não fazemos?’ Até que decidimos que não dava, não havia possibilidade de fazer. Então tivemos a lembrança do genro daquela senhora, o marido da Cristina. Ele tem muito jeitinho e fez de facto uma coisa impecável.” “Extraordinária.” “Sem eles não poderíamos ter feito nada.” Continua a D. Maria Flor: “Eu falei com ele pelo telefone e disse-lhe o que queria. Eu disse ‘Olhe, senhor Hugo, nós precisávamos de um painel, um biombo, qualquer coisa, que nos fizesse lá atrás um pequeno corredor para nós podermos passar para o outro lado sem sermos vistas pela frente, isso não tinha jeito’. Ele disse logo ‘Não diga mais, já sei o que quer’. E fez um cenário fabuloso.” “Ele arranjou o cenário lá em Lisboa e trouxe-o no carro e montou-o aqui.” “Quando o vi, disse logo, ‘está belíssimo’.” “E ainda lhe pedi outro favor, pedi-lhe uma cabaninha para o presépio.” “E ele fez, com coisas que encontrou no seu sótão.” “E fez as asas do anjo.” “Foi impecável.” “Todas as pessoas gabaram.”

Não Ver Passar o Tempo

Todos gabaram e todos estavam presentes. Até os jovens gostam de ver as Cotovias. “Também gostamos de ter os jovens connosco, mas estão a estudar e as raparigas de 30, 40 anos estão empregadas, não têm tempo para estas coisas.” “Isto exige tempo, para os ensaios.” “E a Cristina e o marido também gostam muito destas coisas.” “Acompanham-nos sempre.”

Cristina Anjos gosta de ver as senhoras a divertirem-se desta maneira, “é muito giro, elas assim divertem-se e passam o tempo”. É bom para a aldeia porque “não há divertimentos para as pessoas desta idade. Elas resolveram formar o grupo para se divertir. A aldeia também tem o Orfeão, mas muitas delas não fazem parte.”

O marido da D. Maria de Lurdes bateu à porta, esqueceu a chave em casa. “Desculpem lá ter-vos interrompido.” “Olhe o seu marido.” “Entre, entre.” “Não, não, desculpem lá ter interrompido. Já me vou.”

De volta à conversa, a D. Maria Flor diz que o grupo é uma distracção para as senhoras. Não gostam de estar paradas e gostam de se divertir. E gostam que as outras pessoas se divirtam com elas. Mas é uma brincadeira da aldeia. Não pretendem fazer grandes saídas. “Nós fazemos as brincadeiras mais por aqui, não somos convidadas para ir a outras terras.” “Tirando ali a Tolosa e a Ferraria, é mais aqui pela terra.” “Nem o presidente do concelho ainda nos viu.” “Nunca calhámos lá ir.” “Também ainda não nos convidou.” “Não o podemos culpar muito, nós também não lhe demos a conhecer os nossos trabalhos.”
Mesmo assim, é para continuar. “Parar é morrer.” As senhoras, pelo menos, têm vontade nisso. “Porque não um teatro para a Páscoa?”, lança uma das senhoras. “Isso é muito em cima.”, defende a D. Maria Flor. Teatros é o que não tem faltado na Comenda, no final dos cursos de pintura, de bordados, em que quase todas as senhoras costumam participar. O palco já é habitual na vida das Cotovias da Comenda.
O grupo repete que vontade não falta para preparar a brincadeira do Carnaval, mas já falta tão pouco tempo que é capaz de não se realizar. As Cotovias voltam, assim, “lá para o São João.”

“Já leva aqui umas palavrinhas, já tira o que mais quiser.” “Viemos todas com muito prazer.”
Já se fez noite na Comenda. É hora de fazer o jantar. As conversas são agora sobre o trabalho da casa. Vão satisfeitas as Cotovias.

A luz morre ao sair da aldeia, só à passagem do carro a estrada se ilumina. De volta a Portalegre, como quem vem da Comenda, estamos no centro do mundo.