Há cada vez maior distância entre os sacerdotes e os mais jovens”

Há mudanças de fundo a fazer na hierarquia da Igreja para assegurar a validade do seu papel na sociedade, defende Marcelino Dias Marques, pároco no concelho de Portalegre e responsável pelo Serviço Pastoral do Ensino Superior. O padre afirma que essas são alterações que passam pela actualização da linguagem utilizada, pela melhoria da comunicação e pela renovação e revitalização do clero, tudo em busca de respostas mais exigentes para um novo século.

Que razões justificam a existência de um Serviço Pastoral do Ensino Superior (SPES) em Portalegre?
Marcelino Dias Marques (MDM) – A presença da Igreja é sempre necessária. Mais do que impor alguma coisa, o que importa é propor e sobretudo acompanhar as pessoas nas diversas fases das suas vidas. O ensino superior tem uma larga expressão nesta cidade e a Igreja pode desempenhar um excelente papel, uma excelente presença junto destes jovens que vão criando expectativas em relação ao amanhã. Independentemente da fase da vida em que estejamos, a componente espiritual é essencial. No meio deste mar de dúvidas e intempéries, ela ajuda o jovem a assentar, a ser realista e optimista.

Que balanço se pode fazer da adesão dos estudantes do Instituto Politécnico de Portalegre (IPP) às actividades propostas pelo SPES? MDM. – Este trabalho da Igreja no ensino superior nunca se pode contabilizar. O que importa é propor, com qualidade, com sentido de responsabilidade e seriedade. Há ecos muito favoráveis. Por exemplo, todo este trabalho que é feito ao longo do ano e que termina com a celebração da bênção das pastas dos finalistas, pela forma como tem funcionado, pelas respostas dos estudantes, é um reflexo de como a presença da Igreja no ensino superior desta cidade não está a mais. Depois há outros ecos. Todos os anos tem havido jovens que se preparam para o baptismo, que aproveitam o ano académico para fazer uma caminhada ao nível da fé e que são confirmados, ao fim do ano, através do sacramento do crisma.

São formas de ligação dos jovens à Igreja, ainda assim, com muita expressão? MDM – São na ordem de algumas dezenas de jovens. Desde há quatro anos, quando o SPES começou a funcionar, já se baptizaram 14 jovens. Mas, mais do que contabilizarmos, o que importa é ajudar esta gente que muitas vezes chega aqui desintegrada, com dificuldades em encontrar espaços e grupos. São formas novas de entrar na vida dos jovens. O mais importante é a Igreja ser uma presença criadora, empreendedora, imaginativa, que ajude e auxilie, para que estes jovens não percam a sua identidade cristã, às vezes recheada de experiências fabulosas nas suas comunidades e que se vêem perdidos num meio sem oferta a nível espiritual. Importa que eles façam o seu percurso, vivam o seu presente e possam viver a sua adultez com responsabilidade.

Esse momento que referiu, o da bênção das pastas, sentiu-o, de facto, como uma manifestação de fé por parte dos finalistas ou acabou por ser, para a maioria deles, apenas mais um momento no ritual da queima das fitas, sem qualquer sentido espiritual? MDM – Claro que é difícil responder a essa pergunta. A celebração da bênção é o resultado de todo um percurso. E a prova é que tivemos vários encontros, nas escolas, na Sé. Houve também o período de preparação espiritual, com confissões, com oração. E esta gente foi aderindo. Não é mais um número dentro de toda a semana académica. Outro sinal é o de que só de há quatro anos a esta parte é que existe uma única missa de bênção – antes, cada escola fazia a sua. São manifestações muito gratas, que são vividas por cada um de acordo com a sua sensibilidade. Mas creio que foi uma autêntica manifestação de fé.

Prática dominical em quebra

Sendo de jovens que se fala, a verdade é que foi exactamente nas classes etárias entre os 7 e os 24 anos que a prática dominical, a ida ao domingo à igreja, mais decaiu, segundo os dados do recenseamento de 2001. O que é que falha na acção da Igreja Católica junto destas faixas da população?
MDM – Números são números. A análise dos censos da prática dominical pode ser feita e vista de muitas formas. A nível do País houve um decréscimo a norte e um aumento a sul, nomeadamente no Alentejo, isto porque, como a prática no sul é baixa, há sempre a tendência para subir. Contabilizarmos a qualidade dos cristãos só pela ida à missa dos domingos são uma visão e uma leitura relativas. Nas paróquias que me estão confiadas, de 1991 a 2001, houve um aumento de 24 por cento das presenças na missa. Há muitos mais itens para podermos contabilizar se a presença da Igreja é ou não significativa. A Igreja falha muito é no aspecto da comunicação, na forma como transmite a mensagem. Há como que uma disfunção entre o que propõe e as ofertas pastorais. Quando a Igreja propõe, de forma criativa, servir desinteressadamente e envolver-se na tentativa de encontrar respostas para os problemas sociais, as pessoas vão aderindo. A fé não pode ser só teoria, tem de ser vivida e manifestada através de obras e da presença das pessoas e dos sacerdotes. O mundo evoluiu bastante, a sociedade vai mudando e a forma como a Igreja se faz entender é que, por vezes, não é a mais correcta. Eu preferia uma Igreja não tanto clerical, mas que envolvesse mais os jovens e os leigos. Em Portugal e nos países mais desenvolvidos o clero está bastante envelhecido, há cada vez maior distância, na idade e na linguagem, entre os sacerdotes e os mais jovens.

Não é, ainda assim, preocupante para a Igreja o facto de a juventude não mostrar grande interesse pelos “caminhos da fé”? A Igreja Católica não corre o risco de perder, com esta situação, uma ou duas gerações de fiéis?
MDM – Há duas semanas, o Papa João Paulo II conseguiu congregar à sua volta, em Madrid, cerca de 700 mil jovens. Esta diocese juntou, no sábado antes da Páscoa, 700 jovens. Dois dias depois congregou, noutro ponto, 400 acólitos, adolescentes e jovens. Apesar de tudo, a Igreja ainda é uma força mobilizadora. Mas como é que pode continuar a ser significativa nas escolas, junto dos jovens, nos meios empresariais e operários? Tem de ser com uma presença muito humana, acolhedora, que abra portas e que debata os problemas. Os de hoje e não os de ontem ou os de amanhã, com muita humildade e espírito de serviço. Uma Igreja que não serve, não tem utilidade. O papel principal da Igreja não pode ser o de impor, tem de ser o de propor.

Em termos práticos, que formatos alternativos podem ser propostos para, como diz D. Augusto César, bispo de Portalegre e Castelo Branco, evitar “a repetição pura e simples dos modelos do passado”?
MDM – A Igreja não necessita de perder a sua identidade, mas tem de formar os seus agentes – catequistas, sacerdotes – de maneira constante e actualizada, privilegiando o aspecto comunitário da fé, mesmo da vivência dos sacerdotes entre si. A hierarquia da Igreja não pode só propor, necessita de ouvir as bases, de descer ao concreto, ao povo, para que se vá renovando sob o impulso do Espírito Santo. Se o comum dos fiéis for escutado, também se sente mais alentado e achado para tomar decisões importantes no seio da própria Igreja. É necessário haver espaço de diálogo, de conhecimento mútuo, para que a confiança seja maior. A hierarquia da Igreja falha um pouco nisso. Mas também há coisas boas de que não se fala e que se fazem, ao nível do lazer, da cultura, dos jovens. Existe muito espírito de voluntariado e, por aí, consegue fazer-se milagres. Sobretudo, é preciso que a Igreja nunca perca a sua identidade, que é servir o Homem no contexto actual, servir a pessoa como ela é, com os seus problemas e as suas alegrias, e não como se gostaria que ela fosse.

Porque é que há cada vez menos pessoas a querer assumir o ofício de padre? É assim tão difícil ser sacerdote em Portugal?
MDM – Não é difícil se essas opções forem vividas com motivação. O problema é se a pessoa perde a sua identidade e a sua sensibilidade. Se se toma e se alimenta uma opção, com afecto, diálogo e fé, essa opção pode tornar-se a coisa mais bela na vida de um jovem.

 

Há uma questão de egoísmo a dificultar essa assunção de funções sacerdotais?
MDM – Há muitos factores. É sobretudo nos países mais avançados que vemos esta diminuição das vocações. Na África, em países da América e no oriente, há, pelo contrário, um aumento significativo. Hoje há um deslocamento do coração das pessoas para as coisas. “Coisificamos” muito a vida, valoriza-se o que é imediato, o que dá prazer. O aspecto do amor, da entrega, do sacrifício, embora exista, parece depois que já não é tão importante. Houve uma deslocação de valores. A Igreja tem de ser inovadora e inteligente, no sentido de permitir aos jovens candidatos, que se interrogam ou questionam, que esta opção de vida continua a ser fantástica. Há algum tempo, uma criança dizia-me que, quando fosse homem, “não gostava de ser padre”. Perguntei-lhe porquê. “Porque o seu trabalho é muito”. Esta é uma razão que inquieta os jovens pela negativa. A forma como passamos a mensagem, a nossa presença educativa e construtiva é que pode não ser, por vezes, a mais exacta. Estamos muitas vezes a jogar com propostas e linguagens que já não são do século XXI.

 

O casamento de sacerdotes deve ser uma questão de escolha e não uma matéria de princípio

Apesar das mudanças que propõe, acha que o celibato é, de facto, uma das questões incontornáveis e de referência da Igreja que devem ser mantidas?
MDM – A questão do celibato já não faz muito sentido dentro de uma leitura razoável, porque é uma questão canónica. Não é sobrenatural, divina nem bíblica. Nós sabemos que os próprios discípulos que andaram com Jesus eram homens casados, nomeadamente Pedro. Foi sobretudo uma regra imposta dentro da própria Igreja. O comum das pessoas, até muitos padres, são favoráveis à abolição do celibato ou a que houvesse uma opção de escolha. A questão é muito discutível. Junto dos pastores protestantes, que podem optar pela via matrimonial, essa crise ainda é mais acentuada. O aumento de vocações sacerdotais não passaria só pela abolição do celibato. Alguns padres seriam melhores padres casando e outros não casando. Temos de procurar o ponto de vista mais razoável, que vá ao encontro do que é necessário para a Igreja, sem perder a sua identidade, a sua missão e a capacidade de responder aos desafios de qualquer cultura e época da história.

E a mulher? Quando é que poderá também aceder ao sacerdócio?
MDM – Para mim será mais fácil, um dia, ser abolido o celibato que existir ordenação de mulheres, ao passo que o casamento de padres e de bispos, nos primeiros séculos da Igreja, já ocorria. Depois, também, pela questão bíblica, porque Jesus Cristo chamou 12 homens - embora andassem algumas mulheres na companhia de Jesus. Há mulheres que seriam grandes animadoras, excelentes sacerdotisas. Mas as mulheres, hoje em dia, fazem muito na Igreja. Podemos é considerar essas tarefas menores.

É preciso haver um novo Papa para que a Igreja alcance as mudanças desejadas?
MDM - Cada época da história é diferente da outra. A Igreja não pode ter uma presença mais construtiva no amanhã, passando por cima do passado. Este Papa é acusado de ser bastante conservador, comparando com João XXIII ou com Paulo VI. Mas este Papa também tem sido incansável no diálogo inter-religioso, nas questões de ética laboral, no desmoronamento das fronteiras entre oriente e ocidente Também acredito que a Igreja nunca pode perder o valor da defesa da vida, pois assim perderá a sua identidade. Em vez do centralismo romano, creio que poderia haver uma outra liberdade para as conferências episcopais de cada país, e aí podia crescer-se muito mais na comunhão.

A mesma motivação que tinha no dia da sua ordenação – continua a senti-la hoje em dia?
MDM –Normalmente, gosto que quem me vê responda a essa pergunta. Esta opção de vida que tomei tem-me ajudado a ser feliz e a ser uma pessoa realizada. Muitas vezes tenho de prescindir de mim próprio e de pôr o bem dos outros acima do meu. Se conseguir encontrar uma resposta para a motivação e a felicidade dos outros, indirectamente também acabo por ficar feliz. Nós somos felizes uns com os outros.

 

Perfil

Oriundo de uma família “profundamente cristã”, Marcelino Dias Marques, 38 anos, natural de Vila de Rei, gosta de se referir à sua 4ª classe como um momento marcante – foi a altura em que a professora lhe propôs a ida para o seminário. É aí que estuda durante os sete anos que se seguem, antes de ingressar na Universidade Católica, onde cursa Filosofia e Teologia. A meio do mestrado, em Madrid, surge a ordenação sacerdotal. Em 1991 passa por Nisa e assume a pastoral juvenil e vocacional. Mantém-se em paróquias nos arredores de Portalegre até que parte para a Alemanha em missão. A experiência durará dois anos. É no regresso a Portugal que o bispo de Portalegre e Castelo Branco lhe propõe a condução do Serviço Pastoral do Ensino Superior, cargo que ocupa há quatro anos.