ESEPTV - Peças
03/02/2016 - 14:40
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O panorama do jornalismo cultural mudou muito nos últimos anos, depois do aparecimento de uma série de programas e de publicações no pós-25 de Abril, quer em termos de qualidade, quer também em quantidade e influência, parecendo na fragmentada escolha do nosso quotidiano, muito distantes os dias áureos do Cartaz, suplemento do jornal Expresso, dos suplementos do jornal Independente (Tentações e Indígena, por exemplo), da mítica revista K, de Miguel Esteves Cardoso, do Semanário Se7e (e do seu suplemento cultural Roteiro), da revista Magazine Artes, do programa “Acontece”, de Carlos Pinto Coelho, do “Câmara Clara”, de Paula Moura Pinheiro, ambos na RTP 2, do “Cartaz das Artes”, na TVI, assim como os muitos programas sobre cinema, literatura e música nas principais emissoras de rádio (“O Som da Frente”, de António Sérgio, na Rádio Comercial, “Cinco Minutos de Jazz”, de José Duarte, na Antena 1, entre outros).
A televisão generalista, devido à explosão da TV Cabo e à possibilidade de cada vez mais se poder aceder de outros modos aos produtos culturais que se pretendem, dedica cada vez menos tempo à cultura e, por consequência, ao jornalismo cultural, sendo o papel de mediadores e “conselheiros” de cultura deixados para programas “light”, não privilegiando a discussão, entrevista e debate (embora muitos deles tenham qualidade), como o “5 para a Meia Noite” e a “Janela Indiscreta”, de Mário Augusto, na RTP 1, o “Agora” e o “Bairro Alto”, ambos da RTP 2, o “Cartaz”, na SIC Notícias, o “Autores”, na TVI, e para as sessões relâmpago onde os comentadores como Marcelo Rebelo de Sousa aconselham livros e produtos culturais aos espetadores, como uma Oprah Winfrey “mais rápida que a própria sombra”.
Em termos de revistas sobre literatura, cinema ou música, o desaparecimento de nomes como a Première e a Total Film (revistas de cinema de referência no estrangeiro, a cujo fim não será alheio o desinteresse dos espetadores portugueses pelas salas de cinema e a pirataria online); a ainda existência de um Blitz ou de revistas reconhecidamente de qualidade mas com vendas muito pequenas, como a revista Ler, do Círculo de Leitores e a Meus Livros, não disfarçam a progressiva subalternização deste tipo de jornalismo para o meio online (noutra vertente, temos revistas como a Visão e a Sábado, newsmagazines que dedicam muito espaço à cultura, assim como a Time Out (Lisboa e Porto), mas que estão mais centradas nos autores e no cartaz cultural e não tanto numa reflexão e crítica sobre a produção cultural).
A cultura não vende
Para Nuno Catarino, jornalista do Público na área do jazz, e conceituado crítico de música online (colaborador do site “Bodyspace”, da revista online “Jazz.pt”, e autor do blog “A Forma do Jazz”, o primeiro deste género musical em Portugal), a evolução do jornalismo cultural em Portugal tem estado a par com as mudanças verificadas no mundo inteiro, devido ao surgimento e evolução da internet.
“A adaptação da imprensa ao formato online” alterou “os tipos de conteúdos” e os suplementos habituais de fim-de-semana deixaram de “ter a relevância que tinham anteriormente”, com essa mesma informação agora “disponível online, através de blogs, webzines e sites especializados”. No entanto, considera que apesar da “conjuntura económica e de um contínuo desinvestimento na cultura”, ainda subsistem “bons exemplos nacionais, quer offline quer online”, em termos de jornalismo cultural.
Victor Afonso, licenciado em Educação Musical, músico (com o alter ego de Kubik) e compositor de várias bandas sonoras para cinema mudo, teatro, bailado, performance e poesia, jornalista sobre temáticas culturais (nomeadamente cinema, música e literatura), para publicações como o Blitz, e revistas/fanzines como a Mondo Bizarro, sendo ainda programador e orientador cultural com vasta experiência, considera que o estado do jornalismo cultural português na televisão e na rádio “é deveras deplorável. A formatação impera e o nivelamento por baixo”, também. Se em relação à televisão e ao serviço público em geral Victor Afonso não encontra atenuantes, já em relação à rádio considera que “há alguns bons jornalistas com boa formação cultural, mas nem sempre têm o espaço radiofónico necessário para desenvolverem o seu trabalho”. Em termos do online, vê o panorama “muito fragmentário, mas há bons exemplos de sites e portais com qualidade com conteúdo cultural”.
Clara Caldeira, colaboradora do programa “Câmara Clara”, da RTP 2, de 2010 até ao seu fim em 2012, e atual doutoranda em Estudos de Cultura, na Universidade Católica, e ainda investigadora júnior do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da mesma universidade, pensa que o “primeiro problema é a escassez do jornalismo cultural em Portugal e a redução a que tem sido sujeito nos últimos anos. Há pouco espaço nos jornais, na rádio há um ou outro programa, e na televisão idem”. Quanto à imprensa generalista, considera que “o pouco espaço existente é ocupado por divulgação e crítica, sendo esta última um fator fundamental, mas que dada a escassez de espaço, requer uma avaliação mais exigente”. Conclui, com algum pessimismo, que “é um cenário pobre, em que falta diversidade, acossado pelo lado comercial dos média, e pela ideia de que «a cultura não vende»”, embora ressalve que pensa que os jornalistas culturais em Portugal, sendo muito poucos, “têm consistência a nível de formação e que o trabalho realizado é de uma qualidade muito aceitável”.
Para Cláudia Arsénio, jornalista da TSF, especialista na área da Cultura (“Cinemania”, com o crítico João Lopes, as noites dos Óscares, retrospetivas dos Festivais de Berlim, Cannes, Veneza), atualmente o “estado do jornalismo cultural é frágil. Numa altura em que as redacções estão cada vez mais vazias e se aposta cada vez menos em áreas “alternativas”, quando há cada vez menos memória nessas redações e tudo é feito a partir das agências de notícias, a verdade é que a Cultura perdeu lugar”. Na rádio onde trabalha desde 2005, “a Cultura é vista como um extra, algo que tanto pode estar presente para abrilhantar um noticiário, como é perfeitamente dispensável em caso de necessidade”.
As elites fazem avançar a sociedade
Em termos do universo cultural jornalístico das ondas hertzianas, a Antena 1 ainda mantém um apreciável nível de programas culturais (“Cinemax”, “Crónicas da Idade Mídia”, “Outras Histórias da Música”, “Se as Canções Falassem”, etc), ao contrário da TSF (destacando-se os espaços diários para “O Livro do Dia” e a “Fila J”), e ainda a Antena 2, um caso único de qualidade e profissionalismo em Portugal (destacando Clara Caldeira o programa “A Força das Coisas”, ao sábado, de “entrevistas e conversas, com lugar a crítica, opinião e expressão individual”).
A Antena 2 é precisamente uma estação que se destina a um público reduzido, ou elitista, uma das questões mais interessantes do jornalismo cultural hoje em dia: o ser especializado cada vez mais para nichos culturais fiéis, ou o tentar subsistir num mundo onde os média estão fragmentados e difusos, apelando ao maior nível possível de pessoas e tornando-se logo mais comercial e com menos qualidade, apenas mais um “produto” neste mar revolto da chamada Cultura de Massas?
Este dilema percebe-se melhor nos jornais diários portugueses, onde a cultura tem um papel quase negligenciado em relação a uns anos atrás, e onde o que está na moda e está nas bocas do mundo se torna em “cultura” e em destaque.
As exceções são o Ípsilon, do Público (que fundiu os suplementos Y, Mil Folhas e Fugas), e no caso dos semanários e quinzenários, o suplemento Atual, do Expresso e do JL - Jornal de Letras e Ideias (que mantém o mesmo estilo de conteúdo e grafismo há já muitos anos, podendo-se dizer, como Victor Afonso, que a sua função de informar um público alvo fiel, “não é colmatada por mais nenhum outro jornal mais generalista”), exemplos que podem no entanto ser considerados cada vez mais elitistas e “obscuros”, fazendo ainda mais notadas as ausências de suplementos culturais mais generalistas, como o DNA, do Diário de Notícias, ou os já referidos suplementos do jornal Independente.
Mas fará ainda sentido hoje em dia falar de níveis de cultura, com o atual alcance dos média, as novas tecnologias e um mundo globalizado?
Se pensarmos que a Cultura de Massas, tão criticada pelos filósofos da escola de Frankfurt nos anos 50 e 60 (entre os quais se destacou Theodore Adorno, que se referiu depreciativamente à economia de mercado e ao previsível fim da dicotomia entre cultura superior e cultura popular), tende a confundir-se hoje em dia com a Cultura Popular, constata-se que as intersecções e os efeitos mútuos entre ambas são inúmeros.
Victor Afonso recorda que esta distinção era “clara e marcante no tempo do Estado Novo, no qual havia uma notória política educativa e cultural para incentivar essa clivagem. Num mundo aberto e globalizado, não faz sentido compartimentar a cultura dessa forma. Já a elite sempre existiu e continuará a existir”. Mas o problema é “que as elites têm, muitas vezes, conotação pejorativa e conotada com uma certa sobranceria social”. O músico, Programador do Teatro Municipal da Guarda e coordenador do seu Serviço Educativo, conclui dizendo que “a história prova que são as elites que, muitas vezes, fazem avançar e desenvolver uma sociedade”.
Nuno Catarino, crítico musical numa área muitas vezes apontada como elitista, a do jazz, pensa que a “partir do momento em que a internet permite o acesso direto a qualquer informação, por parte de qualquer pessoa, algumas fronteiras e rótulos deixaram de fazer sentido”. Para o jornalista, que embora escreva sobre artistas de craveira mundial e de várias nacionalidades, continua a privilegiar as entrevistas, os concertos e o contato pessoal e social com os artistas sobre os quais escreve, “os públicos continuam a existir, embora agora mais fragmentados, imprevisíveis e miscigenados”.
Cláudia Arsénio lembra que “o alcance dos média é vasto e a oferta é muito maior do que há alguns anos”, pensando que não faz muito sentido falar em Alta e Baixa Cultura: “o facto é que há públicos diferentes que gostam e consomem tipos de cultura diferentes”, não lhe parecendo certo dar-lhes conotações qualitativas. “Pode soar politicamente correcto, mas considero apenas que são diferentes, e isso é positivo”, remata.
É importante chegar ao maior número de pessoas
Clara Caldeira, para quem a experiência no programa “Câmara Clara” foi um “trabalho muito estimulante”, que a “colocou em contacto com pessoas (artistas e autores) muito marcantes”, tem consciência de que esse “público era obviamente minoritário, mas consistente e fiel”, crendo que se trataria “de um público já relativamente culto e interessado”.
Quanto à distinção entre Alta e Baixa Cultura, a licenciada em Ciências da Comunicação refere que não faz sentido, “porque a arte e os estudos de cultura tendem há muito para anular essas fronteiras, pelo menos em termos rígidos. A prevalência do cinema e da música, como artes mais “populares” onde a autoria e as franjas continuam a expressar-se, é uma das evidências do problema que são essas fronteiras em termos absolutos”, assim como as instalações, as performances, a fotografia, etc. No entanto, Clara Caldeira pensa que “continua a existir um público de elite, ou seja, pessoas com acesso mais precoce e qualificado à informação, à educação, ao consumo cultural”.
E poderá a sobrevivência de um jornalismo especializado como é o cultural, depender de atender às necessidades de um determinado público-alvo, como os nichos de mercado, ou o objetivo das publicações e programas deverá ser o de chegar ao maior número possível de pessoas?
Quanto a esta questão, Clara Caldeira entende que “há lugar para os dois jornalismos: generalista e cultural. Ambos fazem sentido”, mas considera também fundamental a necessidade de “alargar públicos, um problema que diz respeito em primeiro lugar à educação, e também aos média, bem como aos agentes culturais, que ainda se dirigem apenas ao público de elite, muitas vezes com alguma altivez, sem qualquer preocupação com esse alargamento”.
Nuno Catarino, que alia a sua experiência de jornalista “veterano” na área cultural a uma pós-graduação em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, pensa que o jornalismo cultural “deverá, à partida, ter em conta todos os possíveis destinatários, onde se englobam quer os seguidores acérrimos, quer o público em geral”.
A sua opinião é a de que “o objetivo do jornalista deverá ser informar sobre a obra de uma forma isenta, consciente dos consumidores/leitores, mas sem se deixar condicionar por possível feedback negativo ou eventual pressão”.
Victor Afonso, refletindo sobre uma questão tão atual, refere que “a história do jornalismo cultural demonstra que este sempre revelou formas de corresponder às necessidades de um determinado público com gostos mais específicos, mas nem por isso menos importantes”, considerando que esses “nichos são importantes de manter e satisfazer, no sentido de manter uma informação diversificada e democrática”.
Cláudia Arsénio, licenciada em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social, pensa que “tendo em conta as dificuldades do jornalismo cultural, principalmente nos últimos anos, faz sentido chegar ao maior número de pessoas, até porque isso não significa necessariamente um produto de má qualidade ou popular, no mau sentido do termo”.
O bom (e o mau) jornalismo cultural português
Em relação às áreas onde o jornalismo cultural português estará a par do que melhor se faz no estrangeiro, e onde terá mais lacunas, comparativamente com os jornais de referência da Espanha, França, ou dos países de língua inglesa, a opinião de Nuno Catarino é a de que em Portugal “há bons exemplos, sobretudo na área da crítica (música, literária e cinema)”, passando a principal diferença “pelos artigos de grande fôlego, que em Portugal são quase inexistentes ou impossíveis de realizar”, devido principalmente aos “custos financeiros que acarretam”.
Clara Caldeira considera que as maiores lacunas se encontram na televisão, devido à redução de programas nos últimos anos, e considera que os pontos positivos são a imprensa generalista de referência, como o suplemento Ípsilon, embora considere que este “peca por um certo elitismo e um centramento excessivo na área da música, e quase nenhuma atenção a outras coisas, como a fotografia, por exemplo”. Quanto à comparação com outros países, não a considera exequível, devido ao facto de Portugal apenas ter 40 anos de democracia, o “que têm impacto na educação, na política cultural e na configuração dos média”.
Cláudia Arsénio tem a opinião de que “na área da Literatura e da Música temos excelente jornalismo, mas a área do Cinema já esteve melhor representada”.
Victor Afonso aponta a crítica literária (principalmente na última década), como uma das áreas onde a qualidade cresceu mais, sendo um jornalismo “muito atento aos fenómenos literários internacionais e nacionais e que exercitam uma crítica altamente exigente e de teor ensaístico”.
Por outro lado, uma das áreas em que também aponta mais lacunas é a do cinema, referindo que “a crítica de cinema têm decrescido de qualidade e diversidade: os jornais mantêm os mesmos críticos durante anos (por vezes décadas) com os mesmos tiques críticos de sempre, não abrindo portas para o entendimento de novas formas de expressão cinematográfica contemporânea”.
Outra área de que também é muito crítico é a musical, considerando que faltam “bons jornalistas para o jornalismo musical e boa imprensa escrita sobre áreas musicais menos populares e menos especializadas”.
O Jornalismo Cultural é a primeira vítima da crise
Com a crise económica e um cada vez maior número de publicações a fechar portas, empresas a despedirem jornalistas na área da cultura e a pouca importância dada na maioria das redações e pelo público em geral a temas culturais, será que afinal a anunciada “morte” do jornalismo cultural não é assim tão exagerada?
Clara Caldeira vê o futuro com muita preocupação, embora sabendo que é um problema global. “Houve algumas décadas de evolução e progresso, na construção de uma esfera cultural socialmente valorizada que está a regredir, com consequências para a questão mediática”.
A investigadora da Universidade Lusófona conclui, dizendo “que é lamentável que a cultura esteja a ser considerada um fait divers e um luxo de poucos, quando é na verdade um fator fundamental de equilíbrio social, igualitarização e progresso”.
Lacónica e contundente, talvez pelos muitos anos de experiência na área, Cláudia Arsénio refere que “não é um futuro brilhante”, o do jornalismo cultural em Portugal.
Nuno Catarino traça um panorama mais otimista do futuro, “com melhores condições, idealmente”, esperando que “apesar das dificuldades atuais, que o jornalismo cultural em Portugal consiga sobreviver”. As receitas para esta sobrevivência aponta-as como podendo “passar mais pela via digital e por mais uma especialização (tendências que já se percebem na atualidade)”.
Já Victor Afonso é mais pessimista, traçando, “como a tudo o que a cultura diz respeito em Portugal, um futuro negro e incerto”, referindo como principais problemas a dotação orçamental para a Cultura no último Orçamento de Estado, na linha das políticas sucessivas de vários governos, sofrendo o jornalismo cultural da cada vez menor importância que a cultura tem na vida dos portugueses, e onde “o espaço público dado à cultura é cada vez menor e mais residual”.
Embora reconheça que a cultura é sempre “a primeira vítima das crises”, Victor Afonso enfatiza que é “também um direito constitucional e essencial à vida de todos nós. Os países mais desenvolvidos no mundo são aqueles com mais investimento na cultura. Por isso, todos os políticos e toda a sociedade deviam saber de cor uma frase do filósofo Ortega e Gasset: «A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são atributo de um homem»”.
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