ESEPTV - Peças
03/02/2016 - 14:40
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Ao longo dos tempos muitos foram os povos que habitaram a zona de Castelo de Vide, alguns deixaram antigas vilas de pedra, outras castelos e igrejas, mas o povo judeu deixou muito mais.
"É a parte mais íngreme, escura e húmida de Castelo de Vide", é desta maneira que Carolino Tapadejo, guardião dos segredos da Judiaria de Castelo de Vide, descreve a parte da vila que ainda hoje guarda as memórias de um povo por vezes mal amado.
São ruas estreitas que sobem e descem a colina escondida do sol. Nas ombreiras das portas estão gravados segredos que o tempo não apagou e a fonte da vila é uma lembrança viva daqueles tempos em que cristãos e judeus viviam em comunidade, num clima de tolerância que criou usos e costumes únicos no mundo.
Actualmente existe em Castelo de Vide uma fusão de culturas e religiões que, segundo os investigadores, é única no mundo. Os rituais da Páscoa, a gastronomia, a onomástica da população local são testemunhos vivos da importância que a comunidade judaica chegou a ter na região nos finais do século XV.
Segundo Carolino Tapadejo "o que existe em Castelo de Vide é o resultado de uma mistura de duas religiões e de duas culturas".
A semana da Páscoa é a maior evidência desta singular mistura de culturas. Do Domingo de Ramos, que é o domingo anterior à Páscoa, até à Sexta-feira Santa à tarde a, semana corre com relativa normalidade. Na Sexta-feira Santa à tarde inicia-se a Emulação do Cordeiro Pascal.
A matança do cordeiro está presente em várias religiões do mundo, mas é no rito hebraico que esta tem uma maior importância.
"Há pessoas que matam o seu cordeiro antes de sexta-feira à tarde, agora não estou seguro que o fazem com grande convicção. Porque o fazem? Mais por tradição," diz Carolino Tapadejo.
A matança do cordeiro
O certo é que, a partir do pôr-do-sol de sexta-feira entra-se no Sabat, e no sábado os judeus não fazem nada porque se entra em período de reflexão que todos os judeus crentes e praticantes respeitam.
Outros fazem a matança no sábado depois da tradicional bênção dos cordeiros que é realizada em frente à Igreja Matriz. O pároco sai de dentro do templo para proceder à bênção, não a fazendo sem antes fazer uma pequena homília onde cita Moisés e a presença judaica em Castelo de Vide.
O povo hebraico só come dos animais as partes mais nobres, o que é considerado puro. O sangue e as vísceras do animal estão fora da sua alimentação. Mas após a conversão forçada a que foram sujeitos e a criação da Inquisição, os chamados cristãos-novos deixaram de poder matar os animais por degola, o que lhes garantia que dentro deste não restava uma gota de sangue, passaram a ter de aparar o sangue em vez de o deitarem fora para fugir ao controle apertado da Inquisição. Passaram também a consumir obrigatoriamente as vísceras do animal.
Mas os cristãos-novos criaram maneiras de se protegerem da impureza dos animais, começaram a lavar as tripas dos animais com cal branca e logo após o sangue coalhar traçavam nele uma cruz fervendo-o em seguida.
A refeição da Páscoa
No Domingo de Páscoa come-se o Sarapatel que é feito a partir das partes do cordeiro que os judeus se recusavam a comer na sua religião de origem. Na sua confecção é usado o sangue do animal devidamente escaldado, pão, laranjas e as vísceras do cordeiro.
"Nós hoje gostamos muito, mas imagino o esforço que aquela gente teve de fazer" considera Carolino Tapadejo.
O certo é que esta era a única maneira dos cristãos-novos mostrarem que já não acreditavam na sua religião e que se tinham convertido por completo ao cristianismo, era também a única forma de fugir à inquisição. A tradição mantém-se desde o século XVI.
No sábado à noite realiza-se a cerimónia Litúrgica da Aleluia. As pessoas dirigem-se até à igreja levando consigo um chocalho que escondem nas vestes. Em qualquer ponto do país as pessoas dizem que vão à Homilia Pascal ou à Absolvição de Cristo, em Castelo de Vide diz-se que se vai ver aparecer a Aleluia, o que não é exactamente a mesma coisa.
No momento que o Pároco anuncia a Aleluia, cada pessoa toca o seu chocalho causando uma grande algazarra. Só dentro da Igreja estão mais de duas mil pessoas e outras tantas ficam do lado de fora acompanhando a filarmónica que entretanto também começa a tocar. O cortejo sai então pelas ruas da vila. A noite acaba na casa das pessoas, onde se junta família e amigos para comer os doces tradicionais.
Castelo de Vide enche-se de turistas por esta altura do ano, que vêm de todo o mundo para assistir a esta singular maneira de festejar a Páscoa.
Celebrações pascais
No Domingo de Páscoa tem lugar uma procissão diferente de todas as que se fazem por esta altura. É organizada pela Câmara Municipal e não pela paróquia, que participa apenas como convidada.
"A Câmara convida as entidades a associarem-se a esta iniciativa, e inclusive convida o Pároco a incorporar uma procissão que sai de dentro da sua Igreja" lembra Carolino Tapadejo que já foi em tempos Presidente da Câmara Municipal e por isso encarregado da organização da procissão do Domingo Pascal.
Esta procissão é constituída pelas associações da terra, desde associações desportivas e culturais até associações profissionais passando pela Santa Casa da Misericórdia e outras organizações de beneficência. Os estandartes destas associações escoltam o da Câmara Municipal, que é a instituição homenageada por este evento.
Não existem andores ou imagens religiosas como seria de esperar numa procissão no Domingo de Páscoa, a Igreja aparece representada pelo Pároco que transporta um rosário. Esta é mais uma celebração pagã do que religiosa.
Mais que o Natal, a Páscoa é o momento mais celebrado do ano em Castelo de Vide. Também para os judeus a Páscoa é o momento mais marcante e respeitado.
A Gastronomia
Depois da procissão inicia-se o almoço. Já se falou no Sarapatel e do modo como é confeccionado, mas outras iguarias com origem noutros tempos, chegam à mesa neste dia.
No segundo prato come-se o cachafrito, que não é mais do que carne de cordeiro cortada em pedaços. O cachafrito remonta à época da Inquisição, os estudiosos destes assuntos descobriram, no outro lado da fronteira, o cuschiqui que é um prato em tudo similar ao cachafrito que apareceu em Espanha logo a seguir à expulsão dos judeus imposta pelos Reis católicos.
Havia a necessidade de purificar a carne do animal que não tinha sido morto pelo método dos judeus, a degola. Para purificar a carne, que poderia ainda ter sangue, os judeus que foram obrigados a converterem-se ao cristianismo, ferviam as carnes antes de as fritarem, daí nasce o cachafrito que é confeccionado em dois tachos que estão lado a lado; num ferve-se a carne para logo a seguir se fritar.
Vem ainda à mesa neste dia os molhinhos com tomatada, mais uma vez as partes menos puras, as tripas do animal, desta vez atados em pequenos molhos com molho de tomate, mas estas tripas só são usadas depois de lavadas com cal. Neste dia nenhuma outra carne, para além, do cordeiro é servida.
Surgem depois os bolos da Páscoa, o folar, o bolo finto, as queijadas, as boleimas e os bolos da massa. O bolo da massa é nada mais que o Pão Ázimo, os pães que os judeus comem durante a Páscoa em memória da fuga de Israel. Conta a história que o povo Judeu fugiu da escravidão tão à pressa que não tiveram tempo para deixar o pão levedar, por isso o Pão Ázimo não leva fermento, que está interdito aos judeus durante a época da Páscoa.
O Bolo da Massa é um bolo que não tem açúcar e é confeccionado apenas com água, farinha, azeite e sal. Em Bragança esta mesma receita adquiriu o nome de Massa Sovada e nos Açores de Bolo Levedo. A este Bolo da Massa começaram mais tarde, por alturas festivas, a juntar açúcar, canela e doce de maçã, transformando-as nas tradicionais boleimas. O Bolo Finto e o Folar têm nesta região uma forma de cruz ou até mesmo de um Lagarto gravado, um réptil que os judeus abominam.
No rasto das famílias judaicas
Existem ainda hoje famílias cujo o nome remonta à época da Inquisição, quando os judeus se viram obrigados à conversão e por isso ao Baptismo. A família Maroco é uma das poucas que mantém o nome mesmo depois da conversão, porque este não se relacionava com a religião hebraica. Esta família vinda de Marrocos terá sido a primeira a converter-se ao cristianismo em Castelo de Vide depois de 1406. Ainda hoje existem pelos menos 300 pessoas na região que têm este apelido.
A família Laranjo é de referência judaica. Existem descendentes espalhados pelo mundo, conta Carolino Tapadejo que após uma grande pesquisa documental e de troca de informações entre vários países conseguiu reunir em Castelo de Vide os vários ramos da família que ali teve origem.
Nomes como Leitão ou de outros animais repudiados pelos Judeus, como Coelho, têm nesta região origem nas famílias convertidas de cristãos-novos, às quais o povo dava estes nomes de um modo depreciativo.
Nas ruas íngremes da judiaria de Castelo de Vide existem casas que pertencem às mesmas famílias há mais de 500 anos. Casas que têm símbolos gravados na pedra e sinagogas dissimuladas e que são um testemunho de que aqueles que lá viveram perpetuaram a sua crença religiosa. As casas das famílias mais abastadas chegam mesmo a ter capelas cristãs, mais um artifício utilizado pelos cristãos novos para iludirem a vigilância da Inquisição.
Numa rua estreita e praticamente escondida por entre o casario, existe a sinagoga que remonta a 1334, quando o rei D. Afonso IV deu autorização aos judeus portugueses para terem os seus locais de culto. Na altura, o Rei pediu apenas que estes fossem discretos, pequenos, longe de praças ou sítios muito movimentados e que a sua arquitectura em nada se parecesse com as igrejas cristãs. E assim o é, não se sabe ainda se a sinagoga foi construída de propósito ou se foi um reaproveitamento de uma casa já existente. O certo é que a comunidade judaica de Castelo de Vide seguiu à risca as indicações de D. Afonso IV.
Esta fusão de culturas que ainda hoje vigora nesta pacata vila só foi possível devido a um clima de tolerância que se viveu em Castelo de Vide desde muito cedo. "Acontece que os cristãos-novos conseguem assumir postos de chefia e direcção em Castelo de Vide e portanto conseguiram que a correlação de forças lhes fosse favorável" diz o Carolino Tapadejo acrescentando ainda que "tudo isto se foi formando ao longo de séculos, durou até aos nossos dias, na minha opinião e na opinião de alguns especialistas nesta matéria, porque houve tolerância nesta região apesar da Inquisição. Nos sítios onde não houve esta tolerância, e não houve na Beira alta e em Trás-os-Montes, o facto é que tudo o que era judaico desapareceu".
Segundo Carolino Tapadejo, muitas são as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo que contactam Castelo de Vide à procura de informação sobre famílias na tentativa de reconstruírem o seu passado. Castelo de Vide é um Santuário para os judeus de todo o Mundo que fazem frequentemente excursões para a visitarem, representando actualmente mais de 40% dos turistas que visitam esta região.
A fonte da vila
Construída por volta de 1500 pela comunidade judaica, logo após o édito de expulsão dos judeus de Portugal, altura em que já haveria várias famílias convertidas em Castelo de Vide.
Situada entre a zona da judiaria e a nova zona dos chamados cristãos-novos está carregada de simbologia. A cúpula foi construída sobre 6 colunas que jogam com as 4 bicas da fonte. No cimo tem uma túlipa, flor que os judeus levaram do Paquistão para a Holanda onde as tornaram num negócio muito rentável. A túlipa é suportada por duas crianças e na sua base tem uma caldeira para levar água, onde, até meados do século passado, as pessoas mais idosas da terra deitavam água e diziam que era para não deixar a túlipa secar.
Nas colunas estão gravadas cruzes que representam os baptismos forçados a que vários judeus foram submetidos.
A água da fonte era utilizada para consumo doméstico mas também para serviços de tinturaria, a jusante da fonte existem tanques onde os tecidos eram tingidos, naquela época o fabrico de farda e tecidos era uma importante actividade económica para os judeus de Castelo de Vide.
A chegada dos Judeus a Castelo de Vide
Em 1492, os Reis cristãos expulsaram os judeus do território espanhol, muitos foram os que escolheram as cidades fronteiriças do Norte Alentejano, onde já existiam desde o século III comunidades judaicas, para recomeçar as suas vidas.
Devido à sua proximidade com o território vizinho, Castelo de Vide foi uma das mais importantes comunidades da altura, muitos judeus viram na proximidade com Espanha uma oportunidade de poder continuar a praticar a sua actividade preferida: o comércio.
Os judeus viveram relativamente em paz no nosso país. D. Manuel I chegou a conceder-lhes vários privilégios, e acolheu mesmo alguns Judeus cultivados na sua corte.
Mas em 1496, na sequência das negociações entre a coroa Portuguesa e a coroa Castelhana para a realização do casamento entre D. Manuel e a Princesa D. Isabel, os judeus são expulsos do território por ordem régia, aqueles que ficaram foram obrigados a negarem as suas raízes religiosas e a converterem-se ao cristianismo.
Muitas foram as maneiras que os chamados cristãos-novos arranjaram para esconder as suas crenças religiosas, mascarando os seus rituais com as crenças cristãs.
As comunidades judaicas deixaram marcas na população de Castelo de Vide. Estas marcas são mais do que a judiaria e a sinagoga: podemos encontrá-las na gastronomia, nos festejos da Páscoa, que é a festa religiosa mais importante para os judeus, e nos nomes das famílias locais, muitas delas descendentes de antigas famílias judaicas obrigadas a converterem-se ao cristianismo.
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